Netflix e a corrida do algoritmo

Entre spoilers e possíveis cancelamentos, nunca houve tanta pressa na hora de assistir uma série.

O ano era 2010. Você sentava no sofá toda quinta-feira ou domingo a noite à espera do novo episódio da sua série favorita. Era sempre um evento, com direito até a pipoca em episódios especiais, como a season finale (final de temporada). A emoção não terminava ao fim do episódio, pelo contrário, as comunidades no Orkut ferviam de debates entre fãs, que esperavam ansiosamente pela próxima semana, enquanto teorizavam o que poderia acontecer.

O ano é 2023. É sexta-feira a noite e a Netflix acabou de lançar a nova temporada de uma série super hypada. Agora você tem, no máximo, até domingo para assistir todos os oito ou dez episódios, se não quiser ser bombardeado por spoilers nas redes sociais. Pior ainda, você precisa assistir o mais rápido possível para que o algoritmo da plataforma entenda que você gostou, e aumente as chances da série ser renovada. Antes um momento de lazer, agora uma bomba relógio. Mas por que isso aconteceu?

A Netflix se popularizou entre 2011 e 2013, com séries que ganharam bastante reconhecimento como House of Cards e Orange is The New Black. Sua forma de lançamento era algo bastante novo: a temporada era lançada de uma vez só, e você decidia como assistir. Acontece que essa liberdade logo foi podada com o surgimento cada vez mais rápido nas redes sociais. Enquanto você passava a tela do seu Instagram, podia se deparar a qualquer momento com um spoiler. A grande revelação de fim de temporada estragada em poucos segundos. Isso te obriga a assistir tudo cada vez mais rápido, assim você pode participar das conversas online.

Reprodução: Internet

É importante ressaltar que a “Netflixzação” das séries é um problema. Séries cada vez mais curtas, por volta de oito episódios, pois são mais fáceis de maratonar em poucos dias. Dessa forma, perde-se a essência de um seriado, que antes consistia em média de 20 episódios. Os fillers, que uma tradução literal seria “enchimento”, são episódios que não necessariamente seguem o enredo principal, como episódios de Natal, de Dia dos Namorados, etc. Esses episódios, apesar de não evoluírem a história, serviam para evoluir os personagens, e ajudar na identificação do público. Mas com um número de episódios limitantes, esses fillers são descartados, deixando apenas o que realmente importa para o andamento da história.

Não é preciso dizer como isso é uma perda. Uma série agora é comprimida num grande filme, picotado em poucos episódios. Tudo isso para que você assista mais rápido sem perder o fôlego – e para não gastar o orçamento com episódios desnecessários.

Reprodução: Internet

O problema maior é que nem todas as séries são feitas para serem assistidas em apenas uma sentada no sofá. Algumas tramas mais complexas requerem um respiro entre os episódios, um tempo para que você possa pensar sobre o que assistiu e tentar adivinhar o que virá em seguida. Séries como Arquivo X não fariam sucesso com os “Monstros da Semana” se fossem lançadas de uma vez. Essa antiga padronização seriada segurava um público fiel por semanas, com boas taxas de audiência. Depois do sucesso da Netflix, poucas são as grandes séries que ainda se encaixam nesse formato televisivo. A maioria é condensada e lançada num mesmo dia.

Também não podemos colocar a culpa apenas nas costas da Netflix. Estamos lidando com uma geração que tem cada vez mais pressa. Vídeos curtos de Tiktok, áudios de Whatsapp em velocidade duas vezes mais rápida do que o normal. Somos bombardeados por tantos novos conteúdos ao mesmo tempo, que não dá tempo de experimentar tudo. Precisamos de coisas ágeis, filmes de uma hora e meia, séries de oito episódios, músicas de dois minutos. Quanto menos tempo gastar, melhor.

Isso causou um efeito negativo no mundo das séries. Com tantos lançamentos saindo ao mesmo tempo, e uma necessidade de assistir tudo o mais rápido possível, é preciso fazer escolhas do que e quando assistir. Mas o algoritmo da Netflix, programado para entender que assistir rápido equivale a gostar, não entende isso.

Reprodução: Netflix

Uma polêmica que tem surgido ultimamente é em relação aos cancelamentos feitos pela Netflix. A empresa é conhecida por cancelar séries favoritas do público. Mas como eles decidem o que renovar ou não?

É tudo baseado no quão rápido você assiste, e quantas vezes você assiste. O escritor renomado Neil Gaiman já precisou pedir aos fãs de Sandman que vissem e revissem a série num prazo de só trinta dias. “Eles estão olhando para “taxas de conclusão”. Então, as pessoas que assistem no seu próprio ritmo não aparecem [no algoritmo]”, disse o escritor. A Netflix entende que se você está demorando para finalizar uma temporada, é porque você não gosta tanto assim. A renovação então se torna um privilégio para poucos, e um pesadelo para a maioria dos fãs.

Isso acaba criando um efeito rebote, pois um questionamento surge: Por que assistir essa nova série se as chances dela ser cancelada são muito maiores? Roteiristas precisam encaixar o máximo de informações possíveis numa temporada só e evitar os famosos cliffhangers, como em Sombra e Ossos, que tentou adaptar três livros numa única temporada, pois sabia que poderia não ser renovada futuramente. Não preciso dizer que foi desastroso. Enredos não tem tempo o suficiente para se desenvolverem, e o público prefere não perder tempo se nunca saberá qual é o final.

Reprodução: Internet

Felizmente, há esperança de mudança! Alguns streamings, como a HBO Max, estão retornando ao modelo antigo e lançando suas séries semanalmente. Nem é preciso dizer o saldo positivo, como a audiência e engajamento nas redes sendo exorbitantes em séries como The Last of Us e House of the Dragon. Inclusive, um engajamento que se mantém firme ao longo de meses, diferente da última temporada de Stranger Things, por exemplo, que logo foi esquecida semanas depois de seu lançamento.

Se essa mudança irá crescer e teremos mais séries semanais, maiores, e com mais calma na hora da renovação, não há como prever. Mas é possível imaginar um futuro decante se o consumo de conteúdo continuar nessa mesma velocidade.


Publicado

em

, , , ,

por

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *