Confira algumas curiosidades sobre o “Festim Diabólico” de Alfred Hitchcock.
Baseado na peça homônima de 1929, escrita por Patrick Hamilton e lançado em 1948, sob direção do mestre Sir Alfred Hitchcock, Rope (no Brasil, Festim Diabólico) conta a história de Brandon e Phillip, que estrangulam o colega de faculdade, David, como parte de uma experiência intelectual. Eles acreditam estar acima da moral comum e que o “crime perfeito” os colocariam em uma posição de superioridade. Depois de cometer o assassinato, ambos colocam o corpo de David dentro de um baú e organizam uma festa na própria cena do crime, com os convidados, incluindo a noiva de David, os pais do rapaz e o ex-professor dos dois, Rupert Cadell (interpretado pelo majestoso James Stewart). A tensão aumenta conforme o Sr. Cadell começa a perceber pistas que o fazem suspeitar que algo está errado. Brandon, que é mais arrogante, sente prazer em dar indiretas sobre o crime, enquanto Philip, mais nervoso, demonstra culpa e medo. Seria o crime perfeito ou um festim à beira do caos?
Confira abaixo algumas curiosidades sobre o longa mais experimental do diretor britânico e detalhes sobre sua produção!
Plano-Sequência
Antes mesmo de1917 (Sam Mendes) e Birdman (Alejandro González Iñárritu), Hitchcock filmou o longa usando longas tomadas para dar a impressão de que o filme foi filmado em uma única sequência contínua. Na época, os rolos de filme só permitiam gravações de até 10 minutos, então, para contornar essa limitação, Hitchcock usou cortes “disfarçados”, nos quais a câmera passava por objetos escuros, como as costas de um ator ou uma peça de mobília, para dar a impressão de continuidade. Esses cortes são praticamente imperceptíveis e foram usados em momentos estratégicos para garantir que o efeito de plano-sequência fosse mantido. Isso foi revolucionário na época, pois ele utilizou apenas 10 cortes ao longo dos 80 minutos do filme, criando assim uma atmosfera claustrofóbica e de constante tensão, colocando o público dentro do apartamento, como se estivesse presente na cena do crime.
Entretanto, o uso do plano-sequência exigiu ensaios intensos para os atores e a equipe técnica, pois como o cenário era limitado e os movimentos eram complexos, qualquer erro exigia que a cena fosse reiniciada desde o começo.
Technicolor
Esse foi o primeiro filme de Hitchcock a ser filmado em Technicolor, uma tecnologia que adicionava cores vibrantes e impactantes às produções cinematográficas, sendo uma inovação marcante para o cinema da época. O uso do Technicolor também permitiu ao diretor explorar o conceito de “luz e escuridão” de maneira ainda mais efetiva, pois ele teve que adaptar a iluminação e o cenário, usando cores cuidadosamente escolhidas para aumentar o impacto visual da tensão e dar ao filme um tom sombrio, mesmo sendo colorido.
Como o filme se passa em um único cenário, o apartamento, Hitchcock usou a paleta de cores como uma ferramenta para enriquecer visualmente a narrativa. Ele escolheu tons específicos para representar diferentes emoções e tensões. As roupas dos personagens, por exemplo, ajudam a sugerir características individuais: Brandon usa tons mais frios e sóbrios para enfatizar sua natureza calculista, enquanto Philip tem uma paleta mais quente, refletindo sua vulnerabilidade emocional.
A iluminação foi cuidadosamente ajustada para aproveitar o Technicolor. A vista pela janela do apartamento vai de um azul claro e iluminado para um tom escuro e ameaçador conforme a noite cai, criando um ambiente cada vez mais claustrofóbico.
O longa foi um dos primeiros filmes a explorar o Technicolor de forma mais psicológica e emocional, não apenas estética. Essa experimentação ajudou a consolidá-lo como um recurso que poderia ser usado para construir a atmosfera e aumentar a imersão do espectador.
Ciclorama
Alfred Hitchcock usou um ciclorama inovador para criar o fundo da cidade de Nova York que aparece através das janelas do apartamento. Ele queria que a vista da cidade fosse convincente e trouxesse uma sensação de amplitude, mesmo dentro do cenário confinado do apartamento. O ciclorama, com cerca de 10 metros de altura e 30 metros de comprimento, foi pintado com uma perspectiva cuidadosa para criar a ilusão de profundidade e tridimensionalidade. Ele mostrava prédios, luzes e o céu da cidade, visíveis através das grandes janelas do apartamento. Esse fundo se tornava quase uma “paisagem viva” e foi uma forma de trazer o exterior para dentro, conectando o apartamento ao ambiente urbano sem precisar de cenas externas.
Além das mudanças de iluminação, o diretor usou nuvens de algodão em movimento para criar a sensação de que o céu estava em constante transformação. Essas nuvens eram deslocadas lentamente ao longo do ciclorama para simular a passagem do tempo. À medida que o sol se punha, as luzes do ciclorama diminuíam, e as janelas dos prédios ao fundo começavam a acender, imitando as luzes da cidade à noite.
Esse detalhamento contribuiu para a ilusão de realidade e dava profundidade ao cenário, criando uma vista que parecia verdadeiramente viva. As luzes dos prédios no fundo também intensificavam o contraste com o apartamento escuro, aumentando a sensação de isolamento dos personagens no interior do espaço.
Inspiração Real
O longa foi inspirado em um crime real que chocou os Estados Unidos na década de 1920: o assassinato cometido por Nathan Leopold e Richard Loeb, dois jovens estudantes brilhantes de Chicago. Esse caso ficou famoso por combinar elementos perturbadores de filosofia, intelectualidade, e a ideia do “crime perfeito”, que influenciaram diretamente a trama e os personagens do filme de Hitchcock.
Em 1924, Nathan e Richard, ambos de 19 anos, assassinaram um jovem de 14 anos chamado Bobby Franks. Eles eram fascinados pelas teorias de Nietzsche sobre a superioridade de certos indivíduos, o que os levou a acreditar que poderiam transcender a moralidade e cometer um crime sem serem punidos. Eles planejavam realizar o “crime perfeito” para demonstrar sua inteligência superior e sua liberdade em relação às leis e normas sociais.
Subtexto Homoerótico
O tema homoerótico no longa foi ousado, especialmente em uma época em que personagens LGBTQIA+ eram inexistentes ou estereotipados em Hollywood. Hitchcock apresentou personagens com essa complexidade emocional e psicológica, evitando cair em caricaturas. Brandon e Philip são retratados como uma dupla extremamente próxima, cujas interações revelam uma intimidade e dependência emocional que vão além do que era considerado comum para dois amigos. Tal proximidade tem uma ambiguidade que pode ser interpretada como uma ligação romântica ou sexual.
No contexto da peça original, os personagens eram abertamente inspirados em Leopold e Loeb, que tinham uma relação homoafetiva e viam seu relacionamento como um fator que os isolava da sociedade. Hitchcock e o roteirista Arthur Laurents, que era gay e estava ciente das limitações impostas pelo Código Hays, usaram insinuações e sutilezas para manter esse elemento subentendido.
Além disso, o diretor escalou Farley Granger (Philip), que era bissexual, e John Dall (Brandon), que mais tarde, historiadores afirmariam sua homossexualidade, e os dirigiu de forma que sua interação transparecesse uma relação íntima. Granger mais tarde confirmou que Hitchcock e Laurents mencionaram o subtexto homoerótico, deixando claro que o relacionamento entre Brandon e Philip tinha uma conexão romântica e emocional. A maneira como Brandon olha para Philip e a intensidade de suas conversas têm uma carga emocional e possessiva, especialmente nas cenas em que Brandon tenta manipular e controlar Philip para que ele mantenha o segredo. Vale ressaltar que, mais tarde, o ator Farley Granger estrelaria outro longa de Hitchcock que também continha subtexto homoerótico: Pacto Sinistro de 1951.
James Stewart
Rope marcou o início da colaboração entre Hitchcock e James Stewart, entretanto, o ator não foi a primeira escolha para o papel de Rupert Cadell. Inicialmente, o diretor considerou outros atores, especialmente Cary Grant, pois ele era uma das grandes estrelas de Hollywood e os dois já haviam trabalhado juntos em Suspeita de 1941, o que o tornava uma escolha interessante. No entanto, Cary Grant não aceitou o papel, e James Stewart acabou sendo escalado. Mais tarde, o ator expressou certa insatisfação com seu trabalho após o lançamento do filme, embora não tenha criticado Hitchcock diretamente, Stewart acreditava que talvez não fosse a melhor escolha para o papel, sentindo que o personagem poderia ter ganhado um desempenho melhor nas mãos de outro ator. Ele também mencionou que o estilo experimental do filme, com o uso de longos planos-sequência e a ausência de cortes tradicionais, não o deixou inteiramente confortável. Embora Stewart não estivesse totalmente satisfeito, sua atuação trouxe um peso moral significativo à história, e seu trabalho com Hitchcock marcou o início de uma colaboração muito produtiva para ambos em trabalhos posteriores como Janela Indiscreta de 1954, O Homem que Sabia Demais de 1956 e Um Corpo que Cai de 1958.
Influência
O longa exerceu uma influência sobre o cinema moderno, especialmente por seu estilo visual único e a exploração de temas psicológicos profundos. Embora na época o filme tenha sido recebido de forma mista, sua abordagem técnica e narrativa inovadora inspirou cineastas a experimentarem a técnica do plano-sequência, além de temas de suspense psicológico.
O efeito de plano-sequência foi revolucionário, e a ideia de criar a ilusão de um filme sem cortes foi retomada por muitos diretores ao longo das décadas. Filmes como Birdman (2014), dirigido por Alejandro González Iñárritu, e 1917 (2019), dirigido por Sam Mendes, foram projetados para parecerem contínuos, sem interrupções de cena. Ambos usaram cortes ocultos e técnicas de câmera sofisticadas para criar a sensação de uma tomada única. Hitchcock mostrou como a falta de cortes podia intensificar a tensão e a imersão, e hoje o plano-sequência é uma técnica frequentemente usada para capturar o realismo e manter o público totalmente focado nos acontecimentos da cena, sem “fugas” para outros ângulos ou locais.
O longa também é considerado o primeiro de uma série de filmes do diretor britânico com personagens que exibem traços de dupla moralidade e que enfrentam dilemas internos, como vemos em Psicose de 1960 e Um Corpo que Cai de 1958. Esses filmes examinam as profundezas da psique humana e os efeitos de influências filosóficas ou psicológicas.
Bônus: Filme Perdido
No final da década de 1960, o diretor adquiriu de volta os direitos de exibição de alguns de seus filmes, e optou por não renovar os direitos de distribuição de várias de suas obras, a fim de deixar como uma espécie de legado para sua filha, Patricia Hitchcock. Como resultado, esses filmes não eram mais exibidos em cinemas ou disponibilizados para o público até que os direitos voltaram a ser liberados na década de 1980.
Os “filmes perdidos” em questão eram: Festim Diabólico (1948), Janela Indiscreta (1954), O Terceiro Tiro (1955), O Homem que Sabia Demais (1956) e Um Corpo que Cai (1958).
Festim Diabólico está disponível via streaming no Telecine e por meio de compra ou aluguel digital no YouTube Filmes, a partir de R$6,90.
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