Atenção: o post a seguir pode conter gatilhos para violência sexual.
Eventos traumáticos que mudam a personalidade dos personagens são comuns nas tramas do cinema. Batman perde seus pais num assassinato brutal ainda muito jovem, Naruto foi abandonado durante a infância e rechaçado por toda sua Vila e o Chaves nem se sabe ao certo quem são seus parentes. Histórias múltiplas que em comum têm a tristeza de suas raízes, como são recurso de crescimento e o gênero masculino dos personagens. No entanto, com as mulheres o cenário é diferente.
The Witcher foi um sucesso de audiência, a série da Netflix não ficou entre as queridinhas da crítica, mas ,com certeza, entre os telespectadores ela fez muitos fãs e chegou a ganhar uma segunda temporada. Pode passar despercebido para alguns, mas a trama abusa de personagens que não aparecerão mais, mas que serve para construir pequenos pedaços do caminho que o bruxo seguirá. Uma das primeiras delas é Renfri, uma princesa que Geralt foi contratado para matar. Logos nos primeiros minutos de tela ela se mostra forte e independente, quando conhecemos sua história sabemos que ela realmente é, mas a troco de que?
Renfri assim como diversas outras personagens femininas das séries, filmes e livros foi uma vítima de violência sexual. De Sansa em Game of Thrones a Buffy a Caça-Vampiros frequentemente as mulheres na ficção são alvo de tal crueldade como único recurso narrativo para seu crescimento na história. E na maioria das vezes não é porque acontece na vida real, não é uma amostra de como nossa sociedade sistematicamente machuca mulheres, é só um jeito preguiçoso, antiquado e misógino para chocar, para transformar mulheres em badass machucadas (daí vem o nome pássaros quebrados), sistematicamente mulheres são feridas dessa maneira específica sem nenhum propósito.
Um exemplo disso é o relato da escritora Seanan McGuire que foi questionada por um “fã” quando uma de suas personagens seria estuprada. Quando. A autora obviamente repreendeu o leitor dizendo que não seria e recebeu como resposta “você não respeita seu trabalho, isso não é realista”. A violência em questão só serviria para alegrar os corações, geralmente masculinos, que já se acostumaram a verem figuras femininas como vítimas que só podem crescer pela mão da violência.
Perda de poder, conflitos morais, laços de famílias rompidos. Existem tantos enredos que podem ser colocados nos caminhos de uma personagem feminina, tantas narrativas que podem endurecer ou perturbar a história. O primeiro passo para começarmos a enxergar essas possibilidade e para desnaturalizarmos essa parte da cultura do estupro é deixar que cada vez mais as mulheres sejam as contadoras dessas histórias. Em The handmaid’s Tale o abuso é levado de maneira quase gráfica, mas muito sensível por parte de uma produção que conta majoritariamente com mulheres. Nos quadrinhos, a Arlequina que também era vítima frequente do Coringa, agora numa roupagem melhor pensada e com o apoio feminino, se desvencilha do relacionamento abusivo.
O caminho do cinema para que os hábitos misóginos que a sociedade cultiva e que ele mesmo ajudou a construir ainda é longo, mas nas palavras de Bell Hooks: “enquanto os homens forem ensinados a igualar dominação violenta e abuso de mulheres com privilégio, eles não entenderão o dano feito para eles e para os outros, não terão nenhuma motivação para mudar.”
Referências: O estupro na ficção e os autores preguiçosos
Seis clichês de estupro na ficção e como evitá-los