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Crítica: Swallow (Devorar)

Um gore limpinho e envolvente

Lançado em 2019, Swallow, que significa engolir em inglês, mas no Brasil ganhou o título Devorar, foi dirigido por Carlo Mirabella-Davis e conta a história de Hunter (Haley Bennett), uma dona de casa que desenvolve uma compulsão por engolir objetos. Quem já pesquisou pelo filme, sabe que o mesmo é descrito como suspense psicológico, então porque eu decidi chamá-lo de gore? Primeiramente, para aqueles que não estão enturmados com filmes de terror, o gore é um dos seus subgêneros caracterizado por gerar desconforto e repulsa através de cenas de violência gráfica ou simplesmente nojentas.

O longa em questão não tem nada de muito nojento, porém, assim como alguns filmes de terror dão medo mesmo que nunca cheguem a revelar o monstro na trama, Swallow gera desconforto sem mostrar nada de repulsivo. Na intenção de criar a sensação, o diretor opta por usar cenas sugestivas em que vemos um pouco de sangue ou algum objeto mais perigoso que foi engolido fazendo com que imaginemos como foi doloroso. 

Mas não para nisso, Swallow abusa das aparências e do nosso senso estético. Quando a personagem de fato ingere algo em cena, nunca é um momento grotesco, pelo contrário, Hunter está sempre linda e em um lugar bonito, visualmente tudo indica bem-estar e proteção. Então, vemos a esposa perfeita e delicada machucar a si mesma dentro do seu lar e a perfeição é destruída. Muitos gores usam da trama oposta em que um personagem é levado a algum lugar para ser ferido por terceiros, justamente porque estamos predispostos a não pensarmos em agressões dentro de nossas próprias casas e por nossas próprias mãos. Ainda que o longa não se encaixe perfeitamente nesse subgênero, a forma como o mesmo pode ser tão desconfortante torna a caracterização bastante útil para explicá-lo.

Reprodução: Swallow

Deixemos agora os rótulos de lado, para tratarmos de outro ponto importante: a gratidão. Acompanhando o dia a dia de Hunter vemos como esta vive apenas de cumprir o papel tradicional da boa esposa e quando decidem colocar alguém para fazer suas tarefas ela reluta, não porque ela ama o que faz, mas porque é a única coisa que possui. Existem vários espaços ociosos em sua rotina que só aumentariam caso as atividades domésticas lhe fossem retiradas. Para piorar seu marido não demonstra interesse pelo que ela faz ou o que poderia fazer fora daquela casa como um trabalho ou atividade qualquer.

Em troca de prestar bem seu papel, Hunter não precisa se preocupar com dinheiro, tem uma vida sem grandes preocupações, uma bela casa e outros itens valiosos e é nessa troca forçada que entra a questão da gratidão. As pessoas ao redor dela agem como se a protagonista deve-se ser grata por aquilo, não faz sentido para eles que uma pessoa que recebe tudo do bom e do melhor possa tomar atitudes que ponham em risco a sua vida perfeita. Pensam, então, que existe algo de errado com ela, já que não conseguem conceber aquela vida como não sendo a ideal para alguém, ou melhor, para uma mulher que antes era pobre, porque no caso do marido rico este ainda pode sonhar mais alto. 

A nossa sociedade força essa gratidão em todo tipo de ocasião, principalmente para quem vem de grupos minoritários, qualquer vitória já é o bastante e quando reclamamos somos lembrados de que existem pessoas em situação pior em uma tentativa de trazer certo alívio apenas em não ser o outro. O estopim que dá origem ao hábito peculiar, entretanto, é específico da vivência das mulheres, não só dessa época. A maternidade compulsória é o conceito de que ser mãe é uma ideia imposta durante a socialização das mulheres, de modo que desde pequenas, meninas acreditam que nasceram para terem filhos e conseguir um é mais um item na lista de coisas que não pediram, mas pelas quais devem ficar gratas.

Reprodução: Swallow

Novamente, rejeitar aquilo que é visto como ideal se torna um indício de um problema na própria pessoa e não no que lhe é imposta a aceitar. Mas, é claro, que a Hunter também não está bem, um adulto com a saúde mental em dia não engole por livre espontânea vontade um alfinete. Acontece, que para poder ajudá-la é preciso aceitar que o problema não está só nela, o marido Richie Conrad (Austin Stowell) mostra que está disposto a fazer tudo para que ela melhore, menos perceber que o problema não está apenas em sua esposa, mas também na gaiola de vidro que criou ao redor dela. Haley Bennett faz aqui um trabalho incrível ao expressar as emoções contraditórias da personagem, no sorriso artificial conseguimos ver, como a sogra mesmo aponta, que ela está apenas fingindo ser feliz.

Entrando no transtorno em si, o que a personagem possui é alotriofagia, também conhecido como pica, uma compulsão por ingerir substâncias sem valor alimentício como terra ou uma bola de gude. Portanto, o seu novo “hobbie” não é algo necessário, muito menos como parte do seu papel como esposa. Ainda sim, esses momentos são ressaltados com planos mais intimistas focados em seu rosto, enquanto as cenas das atividades domésticas são mais impessoais. Guardar os objetos ingeridos, também ajuda a dar importância ao que ela está fazendo.

Não se trata de uma atividade para cumprir expectativas dos outros, aquilo é algo dela, mesmo sendo um problema, é um espaço em seu cotidiano sobre o qual ela sente que pode tomar decisões. Mas quando descobrem seu segredo, ela começa a perder o pouco da autonomia que restava. Acontece que quando vemos Hunter tentando explicar que ter engolido os objetos não tem nada demais, assim como depois faz o mesmo com a questão do seu pai, não é apenas uma tentativa de impedir intromissões, suas palavras são sinceras. Durante a infância até o casamento, ela parece ter reprimido tanto suas emoções que reduziu sua capacidade de compreender seus sentimentos e ações do presente. A falta de maturidade emocional por vezes leva o espectador a querer impedi-la de se ferir, duvidamos da capacidade dela para cuidar de si mesma.

No final, o confronto com o pai biológico é uma tentativa de finalmente começar a se autoconhecer, mostra um amadurecimento emocional. Enquanto, o aborto marca o rompimento com a sua vida antiga onde Hunter era reduzida a seguir as expectativas de ser uma boa esposa. Durante o longa, tiveram vários momentos em que me perguntava como resolveriam o problema dela, tinha quase certeza de que terminaria em tragédia, mas no fim, apesar de não ser o tradicional final feliz, depois de tudo que a personagem passou, acredito que a sensação de alívio e até de esperança falou mais alto do que a tristeza.

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