Como a literatura influenciou e continua influenciando o audiovisual.
Somos contadores de história natos. Desde o começo da humanidade, estamos constantemente criando formas de contar nossas próprias narrativas ou ficcionais, seja por meio de arquitetura, artesanato, pinturas, seja transmitindo pela fala e repassado de geração em geração ou por ela, a escrita. Há um poder na literatura, capaz de criar mundos, pessoas, amores e perdas em páginas. O poder de alegrar, questionar, de arrancar lágrimas e de mudar nossa perspectiva sobre o mundo.
Essa mágica, que já existe há séculos e continua invadindo almas e criando novos leitores, não poderia deixar influenciar esferas e industrias que não a sua. É o caso da sétima arte. O cinema é o que é pela sua forma artística única; de imagens preto e branco sem som, depois dublagem, som original, cores até a experiência audiovisual imersiva completa da obras de hoje, ele cria cenas, interações e diálogos capazes de alterar nossa forma de ver e viver nossas vidas…similar, não? É praticamente impossível pensar no audiovisual de narrativas transformadoras, algo que somos fãs aqui no Cinecom, e não enxergar a influência e a presença da mágica da literatura nas telas.
Essas artes se complementam, já que antes do cinema, estávamos condicionados a apenas imaginar essas histórias a partir de nossas próprias perspectivas. A atividade imaginativa não perde seu valor ou sua permanência, mas o advento do cinema expande ainda mais as possibilidades de se imaginar, permite o acesso e compartilhamento de diversas visões de uma história e a construção colaborativa de verdadeiros universos.
Um dos exemplos primordiais e mais nostálgicos desse encontro de gigantes – visuais, trilhas e narrativas – são as animações clássicas da Disney, que se utilizaram de contos de fadas já escritos e construíram um legado audiovisual e cultural relevante até os dias de hoje. A Bela e a Fera era um romance francês, originalmente escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve em 1740 e e reescrito para sua versão mais famosa de 1756 por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, e se tornou uma das animações mais populares da época, conquistando inclusive o feito inédito de Oscar de Melhor filme em 1992; isso mesmo que você leu, não Melhor Filme de Animação, melhor filme!
E com todos os méritos técnicos que o filme teve, suas inovações para época, a história que torna todos esses avanços numa narrativa especial já estava no livro. Todos os conceitos; uma fera amaldiçoada, uma mulher gentil que foi capaz de amá-la … a literatura já havia construído o imaginário dessa que é uma das histórias mais clássicas de todos os tempos em nossas mentes. E, assim, o cinema pode elevar a experiência ao trazer cenas bem desenhadas e é claro, uma trilha sonora linda: todos que já assistiram essa animação, vão se lembrar DA canção que toca na icônica cena da dança – A Bela e a Fera, assim como o nome do filme – .
Uma história já consagrada se torna algo ainda mais íntimo e especial quando ela é bem interpretada e trabalhada, quando novos significados são criados e se tornam memórias a partir de junções de mundos, de expertises. É o caso das animações clássicas da Disney e também o caso de O Castelo Animado (2004).
Essa é uma das minhas animações favoritas, com a trilha sonora e o casal mais lindo que tive o prazer de conhecer. Um fato curioso é que o livro só existiu, e consequentemente a animação, pois uma criança pediu para Diana Wynne Jones escrever uma história sobre um castelo animado. Ela anotou essa ideia em um lugar tão bem guardado que nunca conseguiu reencontrar o papel, mas desse pedido especial surgiu um dos livros mais divertidos e sinceros que existem.
A releitura do Studio Ghibli, de seu famoso diretor Hayao Miyazaki, transforma aquelas palavras que descrevem um mundo mágico, seres místicos e personagens divertidos, misteriosos e ambíguos em cores vibrantes, traços lindos e cenas de arrancar o fôlego de tão bem animadas. Foi a junção de duas pessoas que sabiam exatamente a mensagem e a beleza que queriam demonstrar para as pessoas.
Adaptar bem essas obras literárias é, sobretudo, uma atividade de entender e realçar a essência presente nos livros. E um dos longas em que esse destaque da ‘alma’ da obra fica mais evidente é na clássica animação de Alice no País das Maravilhas (1951).
Dá pra ver um padrão aqui de animações como um nicho cinematográfico que acerta muito, não é mesmo?!
Vária cenas da animação de Alice contêm as frases mais icônicas e talvez angustiante do livro, como: “Eu era a mesma quando me levantei esta manhã? Tenho uma ligeira lembrança de que me senti um bocadinho diferente. Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta é: ‘Afinal de contas quem sou eu?’ Ah, este é o grande enigma!”
A animação transbordou aquele mundo de maravilhas e loucuras para tela de forma magnífica. Novamente cores vibrantes marcaram presença, além de caminhos estranhos, cenários beirando o psicodélico, personagens esquisitos e uma criança sagaz mas também perdida, pois não somos todos crianças sagazes e um pouco perdidos?
Mas nem tudo são mil maravilhas. Não podemos nos esquecer que existem também adaptações ruins, aquelas que parecem que o material original não teve o seu devido cuidado. E não estou falando de filmes que são diferentes dos livros; existem adaptações incríveis que destoam da narrativa do livro, mas sim de adaptações que não carregam nenhum respeito pela obra que estão trabalhando, por aquela alma que falei sobre lá em cima.
Isso sem contar com o agravante que é nossa sociedade capitalista que visa sempre o lucro acima de tudo, algo que tem marcado Hollywood nos últimos anos mais do que nunca. São lançamento atrás de lançamento de adaptações literárias, de reboots, de prolongação de franquias que já deram o que tinham que dar; toda essa repetição do mesmo, muitas vezes releituras que nem fazem sentido para a proposta original da história, deixam claro lucrar sobre fãs de propriedades intelectuais já estabelecidas é o principal para essas grandes produtoras.
Podemos ver isso com novas adaptações de longas que são ainda recentes, como a série de Harry Potter e Crepúsculo; ambas franquias surgiram nos livros, ainda estão fresca nas memórias mas que certamente vão render dinheiro(e muito) com novos lançamentos, então, obviamente, eles já até estão estágio de pré-produção. O risco de se tentar criar uma história nova parece não ser tão lucrativo para as produtoras como a estabilidade de algo que já existe. É uma via de mão dupla, pois estamos fazendo cada vez mais histórias saindo das páginas e indo para as telas – algumas boas, outras nem tanto -, mas infelizmente isso também tem causado cada vez menos autenticidade na indústria. Esperemos que futuramente, com as reclamações e posicionamento dos fãs que tem se tornado mais e mais frequentes – já que esses tem percebido mais a ganância e sendo críticos sobre essas adaptações – resulte em pelo menos releituras mais respeitosas com as obras originais.
A literatura e o cinema carregam em si o poder de transformar tudo que acreditamos. Algo mágico pode vir da junção desses mundos, e as pessoas que estão envolvidas nas produções dessas obras são determinantes para que elas alcancem esse potencial. Pessoas que querem falar algo, que carregam uma capacidade de compreender o mundo de outra maneira e fazer algo mais difícil ainda… transmitir isso para outras mídias e para públicos novos.
Mas esse texto não é para dizer que uma forma de arte é melhor que a outra, mas sim dizer que somos seres capazes de criar histórias lindas, tenebrosas, revoltantes, tristes; de mudar vidas com as narrativas que compõe essas artes. Assim, o encontro dessas duas expressões artísticas, dessas duas indústrias, tem essa capacidade e são um dos exemplos mais palpáveis atualmente do potencial transformador das histórias.
Eu definitivamente não seria quem eu sou se eu não tivesse a literatura e o audiovisual ao meu lado. Suas obras são o que fazem meu coração bater, me fazem ser crítico quanto as minhas perspectivas e questionar minhas verdades. Esse mundo de possibilidades é o que tornar consumir esses livros e filmes tão divertido, e são o que tornam a vida algo divertido, surpreendente e revigorante de se viver.
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