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Redação Analisa| Gilmore Girls

Para todas pessoas que não conseguiram ser “o filho dos sonhos”

Gilmore Girls é uma série do começo dos anos 2000 em que acompanhamos a vida e interação de três gerações de uma mesma família: Emily, Lorelai e Rory. Durando sete temporadas, a obra foi ,e ainda é, uma das mais famosas entre adolescentes e jovens adultos.

Até mesmo das pessoas mais velhas, já que aborda as visões de pessoas em outras fases e com diferenças de idades.

Com seus personagens carismáticos, uma trilha sonora deliciosa, uma direção calma, cenários aconchegantes e as frases engraçadas, que são sempre rápidas e precisas no tom de humor, Gilmore Girls é um primor a ser assistido até hoje.

Mesmo com tantos elementos memoráveis, o grande trunfo da série são suas três personagens femininas. Apesar dos romances e protagonistas masculinos, nenhuma relação é tão potente, complicada, profunda e até mesmo dolorosa, quanto a relação das três mulheres dessa família.

Mas antes de adentrar mais naquilo que realmente me prendeu na série, vamos abordar mais o laço entre essas três gerações de mulheres.

Reprodução: Gilmore Girls

Emily é a mais velha, a lady da família, uma mulher que cresceu e seguiu todo um roteiro de sua própria vida. Que viveu na elite e sempre amou isso; com os jantares, sussurrar no ouvido do marido os nomes que ele esquecia, organizar os eventos com outras mulheres, decorar a casa e por aí vai. Sempre também muito exigente, querendo apenas o melhor dela e dos outros. Mas o nosso melhor pode ser distinto do melhor de outra pessoa, afinal, nem todos queremos as mesmas coisas, né?!

E é aí que entra Lorelai.

Reprodução: Gilmore Girls.

Lorelai era a garota mais “rebelde”, que queria viver, fugir daquele mundo de etiqueta e bom comportamento. Carregando um humor peculiar e sempre uma força da natureza por onde passa, obcecada por café e um charme absurdo, o mundo de sua mãe sempre a sufocou. Ela sempre se viu sendo forçada a ser alguém que ela não queria ser, e, quando ela ficou grávida na adolescência, viu toda culpa caindo apenas nela, mas nunca no seu namorado.

E então, ela decidiu fugir e criar sua vida com suas próprias mãos. E deu a luz a sua filha, Rory.

Reprodução: Gilmore Girls

Rory é a herdeira de uma linhagem rica, mas que foi criada longe de tudo isso. Sua mãe administra uma pousada em uma cidade pequena, onde elas vivem na sua casa, vão as reuniões da pequena cidade, compram comida dos mesmos lugares; conhecem todos pelo nome, seus rostos, suas características … ela foi criada com aquela vivência do interior. Sua mãe sempre dizia que ela era capaz de tudo, e por essa já percebemos uma diferença entre Emily e Lorelai.

Lorelai sabe o que é não ser próxima da sua mãe, ter uma relação em que não existe confiança, carinho e, mesmo que exista amor, não ter uma relação sólida o suficiente para contar para tudo. Por isso, ela é muito aberta com Rory, sempre com os braços abertos pra compreender e apoiar.

Porém, tudo muda quando Rory passa pra uma escola de elite e Lorelai não tem dinheiro para pagar. A partir daí ela se vê na posição de recorrer a sua mãe, que pelo rápido diálogo, percebemos que só se encontram em algumas datas comemorativas. Emily pagará a escola com uma única condição: que elas jantem toda na mansão, todos eles, como uma família.

E assim, também notamos que apesar de toda frieza e dificuldade, Emily sente falta de sua filha e neta. Ela quer ambas próximas, só não sabia comunicar isso e fez da única forma que conhecia, com um acordo.

Agora você já sabe o conceito básico que a série vai caminhar, trajetória que abarca o começo do ensino médio de Rory até o fim da faculdade. Então, posso ir direto ao ponto e dizer o que faz pra mim essa série tão especial, tão única e tão importante de ser assistida: o retrato da dificuldade de se criar e de ser um filho.

A série mostra como é quase impossível se viver das expectativas dos nossos pais. Representa com maestria a sensação de decepção, de quando os nossos sonhos se confrontam com os sonhos deles, quando todos os ideias que eles criaram ao nosso redor, caem por terra.

Afinal, crescemos, nossos braços ficam longos e nossas pernas acabam chutando essa caixinha mágica onde somos criados. E nossos olhos nos forçam a encaram toda uma vida que desconhecemos, para então buscarmos e criarmos nossa própria verdade.

Nossos pais se frustram por não conseguirem acertar. Remoem culpa dentre deles mesmos e, às vezes, preferem a saudade no lugar de dizer “desculpa, errei”. Isso porque se abrir é ser vulnerável, e muitos pais gostam demais da figura do super-herói para percebem que já sabemos que eles são apenas humanos. Que vão errar, cair e que também não sabem exatamente como prosseguir na vida. Apesar disso, insistem na figura de alguém que carrega todas respostas.

Emily queria tanto que a Lorelai fosse exatamente quem ela imaginou, o ideal de filha com a vida perfeita, a faculdade perfeita, o marido perfeito, o emprego perfeito. Lorelai seria um exemplo na alta sociedade! Porém, nessa própria obsessão de não aceitar quem a filha era, de não dar espaço para filha viver sua própria vida, sem margens para erro, a Gilmore matriarca a perdeu.

That should've been you up there” – The Annotated Gilmore Girls
Reprodução: Gilmore Girls,

Como Lorelai fala em um dos episódios, mesmo se ela não tivesse ficado grávida, ela ainda teria ido embora. Desde antes, ela já não tinha ar naquela casa, e é incrível como a série já estava abordando um tópico que ainda é trabalhado nos dias de hoje. Em This Is Us, por exemplo, uma personagem fala a mesma frase para sua mãe, que não existia ar na casa, brecha para falhar – ou sonhar -.

Apesar de todo amor que existe entre Emily e Lorelai, suas diferenças, a dificuldade em se comunicar, de falar o necessário, a dificuldade até mesmo de ouvir e compreender os sentimentos da outra, torna essa uma relação muito difícil.

Emily erra muitas vezes achando que estava apenas fazendo o melhor para sua filha, e esquecendo que o melhor varia, que nunca sabemos exatamente o que é melhor para outro alguém. No entanto, Lorelai acaba compreendendo em algum nível sua mãe, mesmo que não admita isso, já que Rory entra para esse mundo da elite e uma parte dela gosta.

Isso tensiona uma relação que sempre pareceu firme. Rory se perde e isso é um choque para Lorelai, que sempre enxergou sua filha como a garota perfeita. Enquanto Emily queria mudar sua filha, Lorelai queria mantê-la igual.

Gilmore Girls: Tal Mãe, Tal Filha | Netflix
Reprodução: Gilmore Girls


Lorelai entra numa batalha onde ela só poderia perder, ninguém permanece o mesmo, ninguém é perfeito, e isso é algo muito difícil, entender que alguém que amamos vai errar, vai magoar outras pessoas, é doloroso, imagina ver atos ruins em sua própria filha?

Entre erros e acertos, brigas e reconciliações, essas três mulheres são tudo que torna essa série tão boa, essa relação difícil, mas cheia de amor, que atinge em todos nós, todos aqueles que simplesmente vivem com o peso de saber que não são exatamente quem os pais queriam, aqueles que estão percorrendo o próprio caminho e não o caminho que foi escolhido, e que vivem todos os dias sabendo que isso machuca os pais, mas que não fazê-lo, seria o mesmo que não viver sua própria vida.

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Reprodução: Gilmore Girls

Emily, Lorelai e Rory demonstram que algumas relações podem ser cheia de amor, mas que isso não significa que vai ser uma relação saudável, fluida, leve ou aconchegante. Algumas podem ser como uma tempestade, que em alguns momentos se acalma, mas que depois volta com a mesma força, e que só podemos lidar com isso, seja se afastando, seja tentando compreender.

Espero que essa série teen de sucesso tenha mudado como muitas pessoas enxergam relações familiares, para que possamos ser melhores com os outros que ainda virão.

Sejamos mais abertos, acolhedores e até mesmo compreensivos com suas vidas e decisões. Pois crescer é complicado, é se perder e se reencontrar todos os dias. Assim, talvez em algum ponto, depois de uma longa jornada, possamos falar o mesmo que Lorelai falou para sua mãe:

Você não me perdeu.

E, paralelamente, conseguirmos fazer outra pessoa enxergar que ainda tem um lugar para voltar, mesmo depois dos erros. Assim como foi com Rory, ao compreender que nunca vai perder sua mãe e aquele lar, ainda que o mundo se acabe, enfim.

É como Taylor Swift falou em Never Grow Up:

Oh, meu bem, nunca cresça

Nunca cresça

Poderia continuar simples assim

Crescer “totalmente” não só é impossível como implica perder toda magia do desconhecido, do não saber. É encontrar limites na imaginação, mas, quando nos abrimos, nos permitimos ser criança nem que por instantes, também pode ser redescobrir a magia em coisas novas.

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