O Moralismo

Uma geração puritana incapaz de se relacionar com arte

Nos últimos anos estamos acompanhando uma certa resistência de uma nova geração ao redor da arte, se tornou comum encontrar em redes sociais críticas à séries com determinados conteúdos, o mais recente foi com Sex and The City, com a série se tornando mais disponível na Netflix, uma nova geração de pessoas decidiu assistir pra tentar compreender como ela foi e ainda é tão relevante para toda uma cultura. O resultado disso é… deprimente, comentários de pessoas assustadas da série focar tanto no teor sexual, na vida íntima dessas mulheres ou até mesmo como elas são personagens de momentos, às vezes amáveis, às vezes insuportáveis (assim como eu e você).

Isso é curioso, ainda mais para mim, que venho de uma geração totalmente politizada, que devido as eleições de 2018, viveu debates, foi militante e acabou ganhando uma visão muito aberta sobre o mundo. Estamos retrocedendo? É a sensação que fica em meu estômago quando me deparo com essa visão geral.

Reprodução: Internet

Outra obra que carregou esse viés de que a arte não pode ter nenhum tema provocador, que todos os personagens que protagonizam uma história precisam ser moralmente corretos e higienizados, foi o live action de Avatar. Um pouco antes da série ser publicada, eles disseram que iriam retirar todo o teor machista do Sokka, um dos protagonista, mas, para aqueles que não assistiram o desenho, o Sokka começa machista e isso faz parte do seu desenvolvimento como personagem. Ele inicia a história olhando para sua irmã como essa garota frágil, que até mesmo sua habilidade de dobrar água parece inútil e se coloca numa posição de Alpha, o líder para uma tribo ferida pela perda, porém, ao passar dos episódios, viajando pelo mundo e conhecendo outras personagens femininas fortes e independente, ele perde o arquétipo de garoto machista para um jovem que compreende o mundo ao seu redor, reconhece como mulheres são igualitárias e em alguns casos, com habilidades que ele não tem e que isso não é um problema. O desenho se arriscava ao dialogar com o público infantil sobre percepções de gênero, de exploração, de abuso de poder de um grupo de pessoas sobre outras, e todas contradições que envolvem tópicos complexos são jogados de lado, para tornar a narrativa mais palatavel, numa tentativa de abraçar o máximo de público possível, mas exatamente o que provocou essa decisão?

Essa é uma resposta difícil de entregar, com a extrema-direita dominando muito do cenário político, esse ideal de moral cristão retorna com força, não só isso, como o público para de consumir obras diversas e acaba exigindo cada vez mais dessas obras lisas, sem camadas ou aprofundamentos de tópicos, tudo numa busca pela problematização, pois se uma obra tem um personagem machista, ela é automaticamente errada e problemática, os produtores obviamente carregam essa mesma opinião e os roteirstas são péssimos, não existem explicações ou motivações para os produtores criarem um personagem como ele e logo ele deveria parar de existir.

Esse tipo de atitude apenas apaga todo o desenvolvimento e até mesmo como arte pode demonstrar o pior lado do ser humano. Nenhuma arte tem obrigação de ensinar para os telespectadores aquilo que é certo e aquilo que é errado, arte só tem um único objetivo… ser arte, se ela é boa ou ruim, é algo que varia e depende, mas quando restringimos que uma arte boa precisa ser limpa, que não pode causar nenhum tipo de questão ao telespectador, que não pode levantar nenhum debate, estamos limitando todas as histórias para uma única direção, estamos querendo transformar o mundo ao nosso redor em algo simplista e como consequência os filmes também.

Reprodução: Internet.

Caminhamos para uma arte cheia de pudor, onde tópicos como sexo não podem ser discutidos, onde não existe espaço para ideias e críticas. Pobres Criaturas tenta pensar em algo distinto, na lógica de uma mente surgindo em um corpo já formado, em todas contradições que me remete ao Frankenstein de Mary Shelley, e esse simples fato já demonstra o quão complexo é, afinal, arte também é essa visão do próprio telespectador, no momento que esse é um dos meus livros favoritos, eu o conecto com minha experiência assistindo o filme, certo ou errado? Difícil dizer.

Mas no momento que o filme aborda toda essa experiência única, que varia dependendo de como você se relaciona com ele, muitos rapidamente o jogaram pra escanteio e chamaram de pornográfico, todos os tópicos que a obra tenta trabalhar, o desenvolvimento de uma identidade, a perda da inocência, o controle sobre os nossos corpos e a descoberta de uma independência, entre outros que várias pessoas foram percebendo e encontrando em suas próprias mentes, tudo isso é ignorado no momento que o filme assume suas cenas de sexo, todo o valor do filme é apagado pelo conservadorimos de uma geração que rejeita qualquer obra que a incomode, que prefere que algo não seja trabalhado ou criado, apenas para continuar numa ignorância ou nos mesmos moldes, um puritanismo assustador que é incapaz de assistir qualquer cena sexual.

Essa visão conservadora de esperar da arte uma interpretação ilusória da vida, de um conto de fadas que somos incapazes de encontrar na realidade, e exigir dos roteiros essa fantasia em todos os filmes existentes, e essa é uma questão que perpassa todo o tempo, não é a primeira vez que arte é julgada por uma visão idealizadora e conservadora do mundo, que quer excluir qualquer provocação no imaginário.

Esse tipo de visão criou em 1930, o código de hays, diretrizes que limitavam a arte, ou seja, censura, criado exatamente por essa preocupação pela moralidade e os bons costumes no cinema, a nudez, as drogas, qualquer obra que fugisse de uma visão da moralidade cristão, afinal, até o sexo fora do casamento era considerado imoral, era perseguido por essa visão, tudo para reforçar um patriotismo e um valor familiar no cinema, um valor que sabemos incluir apenas a família branca, heterossexual e cisgênero.

Vivemos em um mundo que luta constantemente para apagar histórias focadas em minorias, em questões delicadas que a sociedade prefere ignorar ou até mesmo algo tão comum como o sexo. E uma nova geração que compra essa ideia, de que a arte que provoca, que incomoda, que puxa a cortina de uma realidade que é ignorada e dolorosa, ou até mesmo das questões envolvendo o sexo e corpo precisa ser esquecida, reforça esse ideal de só existir um formato correto, uma única forma de se criar cinema, séries, novelas, quadros e livros, limita nossa visão de mundo em um reflexo próprio das poucas coisas que queremos ver e também limita nossa capacidade de suportar o mundo e de se alterar com o contato artístico.

É necessário que essa geração perceba que existe uma facilidade risória para perdermos os nossos direitos, para que determinadas narrativas sejam excluídas, perseguidas ou até mesmo alteradas para se encaixar em algum conceito “puro”.

Não estou dizendo que são obras perfeitas e que não existem obras problemáticas, mas que se perdeu o limite, de que qualquer coisa que vá em outra direção, que acaba fugindo do óbvio e do lindo para ganhar recortes em redes sociais, se torna lenha na fogueira. Quando uma novela não pode provocar com um casal de adultos com uma grande diferença de idade e as questões que envolvem essa relação, pois automaticamente ela é taxada de romantização de abuso, onde mais se pode criar uma indagação? Onde se pode explorar a dinâmica dessa relação? O melhor é fingir que não existem casais de adultos com uma diferença de anos e nunca retratar eles nas obras?

Vivemos em uma sociedade que apoia o consumo desenfreado e isso afeta nossa relação com arte, queremos consumir o máximo possível, e nos agarramos aos primeiros pensamentos que temos de uma obra e corremos para o próximo, não pensamos novamente, não questionamos uma obra durante uma boa dose de tempo, e isso já afeta em vários setores, escolas censurando livros, pois tocam em temas como racismo ou até mesmo o holocausto, tudo para fugir de debates delicados, tudo para continuar numa ignorância continua.

Não quero dizer com esse texto que minha visão é a única certa, mas de uma preocupação com uma geração que caminha numa direção assustadora e perigosa, que quer rapidamente colocar tudo em duas caixas: arte boa ou arte ruim. Incapaz de olhar para outros debates, para pensar além da superfície, para tentar encontrar algo na obra.

Carrie, Samantha, Charlotte e Miranda foram marcos na TV, em uma sociedade focada no sexo na visão masculina e personagens femininas dóceis e que nunca buscam prazer, acompanhamos mulheres financeiramente estabilizadas e suas relações, questões sérias, frases que não envelheceram bem e outras que são questões tão atuais que assustam. Mas tudo isso torna uma série muito a frente do seu tempo, sem medo de colocar essas mulheres em uma posição que era considerada imoral, principalmente a Samantha, que não queria se casar ou ter filhos, focada em sua carreira e no próprio prazer com a vida.

Obras de arte podem carregar dezenas de mensagens, tornando muito difícil compreender exatamente qual foi a mensagem principal dos criadores, mas ainda somos capazes de encontrar várias enquanto experienciamos, e não estou falando que não exista arte que acabam romantizando determinados temas ou que não trabalham de forma eficiente algum tópico, pois elas existem, estou dizendo que é necessário parar de colocar no mesmo instante uma obra na categoria ruim, pois ela deu indícios de ir explorar algo complicado, que é necessário assistir, pensar e às vezes até mesmo ler sobre determinados assuntos antes de termos uma opinião oficialmente formada.

Recentemente eu vi uma pessoa no Twitter criticando uma série e no post seguinte dizendo que não leu a sinopse ou assistiu, que toda aquela crítica surgiu apenas pela imagem do cartaz, estamos tão presos nessa lógica que nem percebemos quando estamos fazendo um julgamento sem ao menos entrarmos em contato com o material.

É necessário assistirmos uma obra além da forma simplória e além daquilo que queremos que ela seja, dos valores que adoramos e de como os personagens, roteiro, estética etc precisa se comportar e ser. É necessário vivenciar arte pela arte, de sentÍ-la e tentar encontrar sua resposta ou visão antes de taxarmos ela em dois minutos depois do fim da obra.

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