Aviso de conteúdo que pode conter gatilhos.
A primeira vez que fui cercada por garotos, eu tinha 15 anos e estava bêbada demais para assimilar as investidas de tantos caras desconhecidos, como se eu fosse um pedaço de carne qualquer, logo logo descartado. Depois disso, fiquei um ano sem conseguir beijar ou aceitar algum tipo de contato físico mais próximo sem me sentir sufocada, sem saída.
Queridos leitores do blog, vocês devem estar se perguntando o que esse relato tem a ver com o tema proposto para esse artigo de opinião e eu lhes digo: quando me propus a escrever sobre esse tema, sobre a história de Hannah Baker, percebi que precisava fazer em primeira pessoa para que todos possam compreender como uma narrativa irresponsável pode destruir ainda mais pessoas que já estão quebradas por dentro. Afinal de contas, a história de Hannah não é só dela, é de inúmeras mulheres ao redor do mundo inteiro e a série poderia ter lidado muito melhor com isso ao longo de suas 4 temporadas, sendo 3 delas super desnecessárias.
Lá para frente falaremos de termos técnicos e dados de embasamento, no momento quero que vejam a série com os meus olhos e percebam o quanto machuca ser a observadora de um caos que te coloca num lugar de fragilidade. A primeira vez que vi a série, ele nem fazia parte da minha vida ainda e não tinha encostado em mim, mas senti um enorme desconforto com a construção de eventos sufocantes da série, tudo bem que esse pode ser justamente o objetivo deles, só que não me faz questionar menos por que algo que deveria entreter machuca tanto? A cena de suicídio da principal, sangue pintando a água da banheira e a dor indo embora para a jovem… QUE PORRA É ESSA?
O Brasil tem cerca de 800 mil suicídios por ano, de acordo com a OMS, e a maioria das tentativas não são fatais, ou seja, é muito difícil alguém morrer na primeira tentativa. É doloroso, cruel consigo mesmo e não há razão nenhuma para ser romantizado, não estamos mais na segunda fase do Romantismo para fecharmos os olhos para as desgraças e torná-las poéticas. A intenção de divulgar serviços de apoio é muito digna, mas orientar alguém que precisa de ajuda vai muito além de fazer uma cena explícita de autoquíria e esperar que o jovem machucado não veja como um incentivo.
Em 2018, ainda não fazia ideia de que ele encostaria em mim, tentei suicídio pela milésima vez, a primeira vez de uma forma realmente chamativa com uma cartela amiga de um remédio tarja preta (sem nomes para não dar ideia para ninguém) e foi como se o mundo inteiro estivesse girando, eu era uma bailarina de caixinha de música, me afastando cada vez mais do som que perturbava os meus ouvidos. Dormi por dois dias inteiros e nunca vi a minha mãe tão abatida assim em toda a minha vida, sei que a gente nunca gosta de ouvir isso, mas olhar os motivos que temos pra viver é um exercício muito mais forte do que só seguir o fluxo. Não sei vocês, mas eu via muitos motivos que poderiam fazer Hannah Baker querer ficar e lamento o fato dos mesmos não terem sido trabalhados, a protagonista só ganhou vida, brilho e emoção nos flashbacks da segunda temporada, quando já estava morta.
Outro assunto muito importante que foi tratado da pior maneira possível, foram os estupros cometidos por Bryce e o de Tyler. Sobre o segundo, a cena ainda se repete várias e várias vezes na minha mente, tive um ataque de pânico ao ver a cena e sabia muito bem de onde as lágrimas vinham, eu estava quebrada e a série começou a abrir feridas que não cicatrizam. No livro, a mocinha “deixa-se” ser estuprada pelo vilão, ali ela desistiu de tudo e essa parte é particularmente nojenta, o autor é um homem e não teve um pingo de sensibilidade ao criar esse momento repugnante para chocar os leitores. Tanto a obra cinematográfica quanto literária são irresponsáveis, não aprofundam corretamente essa relação do estupro e do suicídio em si, muitas meninas não ganham visibilidade de recuperação e é tudo muito cru, sem um real incentivo.
Faz algum tempo, um homem tocou em mim e eu nunca me senti tão invadida antes, mas eu ainda só conseguia pensar “Eu mereço, né? A culpa é minha”, saí de lá como se nada tivesse acontecido e continuei vivendo inerte até alguém me dizer que eu deveria ter chamado a polícia, vocês conseguem imaginar? A polícia? Eu não conseguia contar nem para os meus melhores amigos. Hannah Baker tentou contar ao orientador sua história e foi completamente ignorada, lhe disseram para esquecer e, nesse ponto, a série fez justiça a vida real.
Vamos agora aos fatos que todos esperam em artigos de opinião: a série lida bem com alguns temas como bullying, solidão e conflitos adolescentes, porém, isso não compensa, de forma alguma, sua tremenda irresponsabilidade com temas mais sensíveis e até mesmo a falta de senso com o desejo por mais lucro, originando mais 3 temporadas cheias de misturas pouco exploradas de vários temas, causando uma grande confusão na cabeça do público. Os produtores empobreceram seu principal enredo e zombaram de causas sérias ao fazê-las de forma fútil, romantizada e com o desenvolvimento super rápido e vazio. A parte em que o Tyler tenta entrar na escola com uma arma e é parado pelo Clay, com certeza, é uma das piores ideias já feitas em uma produção para adolescentes/ jovens adultos, super irresponsável passar a mensagem de : “faça tudo sozinho, o cara com a arma não vai atirar em você, ele quer um abraço”.
É compreensível que a mensagem da série é que precisamos ser gentis com todos, dar assistência e buscarmos sermos sempre as melhores versões de nós mesmos, mas essa mensagem, por mais imediata que seja, deve ser desenvolvida de forma gradual para que não sejam romantizados atos extremos (como mostrado na série). O bullying é um mal que abre feridas gigantescas e traz consequências terríveis, então, os personagens deveriam terem sido mais legais com o garoto antes dele chegar ao ponto de querer matar todo mundo e isso seria possível, se não estivessem tão autocentrados em pregar uma empatia que só valia em suas bolhas.
A série é um mar de gatilhos, tanto para quem sofre com algum problema retratado quanto para quem consegue se sensibilizar com a dor do outro. Lembre-se caso precise de ajuda, sempre procure um amigo ou parente que confie para desabafar, leia sobre o que está passando em sites de debate seguro, procure fazer atividades que gosta, seja a melhor versão de si mesmo e fique ligado no CVV:
Referências: https://www.culturagenial.com/serie-13-reasons-why-de-brian-yorkey/
http://www.conversacult.com.br/2018/05/infelizmente-13-reasons-why-e-uma-serie.html
https://amavelutopia.blogspot.com/2018/05/13-reasons-why-e-uma-serie-toxica.html