Sobre enfrentar um mundo que te destrói e como lidar com isso.
Em novembro de 2022 comecei a assistir uma série chamada Yellowjackets, era 23h30 e pela primeira vez na minha vida eu não conseguia dormir. Fazia tempo que estava à procura de algo que curasse a dor que o cancelamento de The Wilds: Vidas Selvagens tinha deixado no meu coração. Eu estava obcecada com a ideia de uma sociedade matriarcal, não porque desejava sua existência, mas porque sabia que era impossível.
A verdade é que os conceitos práticos das duas séries são parecidos, mas as verdades não.
The Wilds conta a história de 9 meninas que ficam presas em uma ilha após um acidente de avião, uma delas morre e o telespectador descobre que o que aconteceu não foi um acidente e sim um experimento. Elas estão sendo monitoradas, foram colocadas lá de propósito e tem o suficiente para sobreviver. O experimento tem o intuito de provar que uma sociedade liderada por mulheres tenderia a prosperar muito mais do que a atual. Infelizmente, ela foi cancelada após duas temporadas, deixando para trás um legado interessante, mas sem finalização, assim como uma sensação de desespero nos fãs (eu).
Quando descobri que a história que eu tanto amava não teria continuação, criei um novo objetivo, encontrar algo parecido. Foi assim que cheguei em Yellowjackets.
Nós sempre fomos essas pessoas. Segredos sempre foram parte de nós.
Um avião cai no meio de uma floresta, nele tinha um grupo de adolescentes, membros de um time de futebol do ensino médio, elas são amigas e rapidamente se organizam para lutar pela sua sobrevivência. A presença masculina na série é pouca e faz questão de nos mostrar que transita entre irrelevante e negativa. O que eu não sabia é que a obra tem um aspecto surpreendente – canibalismo.
Eu esperava uma história de superação, adolescentes criando uma sociedade, se apoiando, colocando fogo no patriarcado, mas me deparei com elas comendo umas às outras. Mesmo sendo chocante, eu reconhecia alguma verdade naquelas cenas, só não sabia identificar onde. O tempo passou, eu reassistia constantemente e me pegava fazendo comparações com partes da minha vida ou das coisas ao meu redor. Mas como isso era possível? Eu nunca sofri um acidente; nunca passei fome; nunca morei em uma floresta; nunca cometi canibalismo (eu juro!), nunca nem entrei em um avião.
Eu tentava descobrir como uma série tão estranha se fazia presente vividamente na minha vida tão comum. Da mesma forma que comecei a assistir, eu descobri. Estava deitada na minha cama, sem conseguir dormir, era exatamente 23h30 e tudo chegou em minha cabeça.
Na história, é esperado das personagens um comportamento agradável a todo tempo. Devem ser talentosas, mas não tanto que os meninos se sintam ameaçados. Bonitas, mas não tanto que chamem atenção. Devem concordar com tudo que é dito, mas precisam ter opiniões próprias. Devem ter amigas próximas, mas não tão próximas que outros achem que estão namorando. Inteligentes, mas não muito. Quietas, mas na medida certa. Porém, quando estão presas nesse lugar isolado, apesar da fome, dor e tristeza, elas se sentem livres. Não tem regras sociais a serem cumpridas. Existe a oportunidade de encontrarem uma identidade própria, fora do molde criado por pessoas que não entendem seus pensamentos e sentimentos.
A existência feminina é dolorida, é difícil achar conforto no mundo em que vivemos porque acreditamos que essa dor é normal. Em Yellowjackets, elas se alimentam dos corpos umas das outras, não porque querem, mas porque precisam, é a única forma de sobrevivência. De alguma maneira, foi instalado no mundo que nós não podemos viver em paz, as mulheres brigam e lutam, consomem umas às outras porque existe espaço para poucas, se nós não nos canibalizamos, ficamos sem empregos, sem estudo, sem comida e sem amor. Simultaneamente, aprendemos com a experiência coletiva, evitamos cometer erros parecidos para a honrar a nós mesmas e as que se sacrificaram.
E quando seguimos nossas vidas, temos que lidar com a decepção dos outros, como se a nossa não fosse suficiente, sempre comparadas com quem já fomos e quem nunca seremos capazes de ser. Assim como as personagens não conseguem lidar com seu passado e o que as levaram até lá, nós preferimos esquecer, ou pelo menos tentar. Sentimos inveja de quem amamos porque amar não é suficiente, é preciso ser perfeita. Aceitamos os namoros e amizades ordinárias porque não nos consideramos suficientes para mais do que o mínimo.
E mesmo assim, no final de tudo, mesmo nos matando, consumindo, invejando e destruindo, em momentos de dor, procuramos mulheres, amigas, mães, avós, desconhecidas.
É muito fácil, nos enxergar nas personagens, em suas dúvidas, incertezas e medos.
Como a Van, temos nossas faces mutiladas e as únicas pessoas para quem mostramos, são outras mulheres.
Como a Shauna, geramos vida e morte, e as únicas pessoas para quem mostramos, são outras mulheres.
Como a Taissa, temos raiva e as únicas pessoas para quem mostramos, são outras mulheres.
Como a Nat, sentimos dor e as únicas pessoas para quem mostramos, são outras mulheres.
A verdadeira face da experiência feminina é chocante, é dolorosa, traumatizante e canibalística, mas quando a vemos, diferente dos outros, nos sentimos confortadas.
Nós somos o que fingimos ser. Então, precisamos ter cuidado com o que fingimos.
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