Como amiga intima de Clarice, sinto que ela gostaria de assistir A pior pessoa do mundo (2021).
Não me recordo do local, da página, do parágrafo, mas sei, SINTO, que em algum lugar Clarice escreveu: ‘Viver é ferir ao outro.’ Infelizmente, a menos que você seja um hábil estudioso da autora – que é ucraniana de nascimento, mas brasileira de coração – terá que confiar em mim. E se ela não disse? Bem, eu sei que isso é algo que ela diria.
Como uma jovem mulher na casa dos (quase) vinte, acredito que não existam sentimentos, emoções e pensamentos sobre a minha existência que Clarice Lispector não tenha escrito. Somos amigas íntimas, intrínseca a outra. Clarice descreveu meus anseios de ser uma jovem meio melancólica, viveu comigo a perda de um primeiro amor e todo o drama que isso comove. Clarice me conhece. Quase ouso a chamar de Cla e dizer que nós duas exploramos juntas as ruas cariocas, nas quais ela roubou meus pensamentos mais profundos e escreveu seus contos. Estou tendo um ego super inflado ao pensar isso? Prefiro não levantar questionamentos sobre.
Quer um exemplo de que eu sou Cla e que Cla sou eu? Em ‘Uma vida que se conta’, biografia que Nádia Battella escreveu sobre Clarice, minha querida amiga afirma: ‘Sou uma mulher que sofre, como todas as pessoas do mundo, as mesmas dores e os mesmos anseios.’
Dito isso, não resta dúvidas de que tenho o local de fala para recomendar um filme pela minha grande parceira de vida.
Recentemente, assisti a obra A pior pessoa do mundo, filme norueguês de 2021 indicado a dois Oscar’s e outros diversos prêmios. E então, me vi reflexiva sobre a história da protagonista, Julie. Afinal, quem nunca se sentiu a pior pessoa do mundo? Não seria esse sentimento um dos mais indispensáveis à existência?
Dividido em doze capítulos, mais um prólogo e um epílogo, o filme dirigido pelo cineasta norueguês Joachim Trier – e muito bem protagonizado por Renate Reinsve, em seu segundo trabalho com o diretor – tem uma premissa simples. Viver ou não viver, ser ou ou não ser – oh, como minha querida Cla teria se deliciado! -.
Vemos a jovem Julie tomando suas decisões e tendo seus dilemas profissionais, mudando de carreira e depois se redescobrindo, querendo ou não ter filhos … obrigação ou desejo genuíno? Mas, por fim, a vemos amando. Logo no segundo capítulo, ela se encanta pelo cartunista, onze anos mais velho e querendo viver esse amor sem perder tempo. Até a hora que ela não quer mais.
Julie primeiro é estudante de medicina, até que é de psicologia e então é fotógrafa. Depois Julie tem cabelo longo, e então curto e, depois, loiro. Julie ama seu namorado, depois tem o coração partido e se apaixona novamente.
E é esse o desenrolar da premissa: a vida e suas tomadas de decisão, sejam elas boas ou não. O longa aborda um momento específico da vida da protagonista repleta dessas escolhas importantes, onde tudo parece crucial e errar não é permitido. Afinal, ela já tem quase 30 anos; a vida já deveria estar feita a esse ponto, não é mesmo?
Com um excelente trabalho de direção de Trier, o filme cativa o público do início ao fim, com cenas de tensão e descontração. Somos capazes de olhar para a protagonista e nos ver em cada decisão que ela toma, mesmo com algum julgamento interno presente.
Assim como eu e Clarice, acho que você também pode gostar de A pior pessoa do mundo e se sentir acolhido ao perceber que ninguém sabe o que está fazendo e que estamos todos no mesmo barco.
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