Fim dos anos 90. O clima é de férias, e o dia, lindo lá fora. Dentro do quarto do hotel, uma gravação começa. Mas algo está prestes a acontecer pela última vez.
Atenção: o texto a seguir possui spoilers!
A câmera amadora treme nas mãos da enérgica Sophie (a estreia fantástica de Frankie Corio). Em seus tenros onze anos, sabedoria e inocência convergem enquanto a cinegrafista-mirim vira a lente do objeto para o pai, Calum (o querido e maravilhoso Paul Mescal), que relaxa na varanda do cômodo, e pergunta a ele: “o que você queria ser quando tinha minha idade?”. A questão não tem uma resposta objetiva, mas é essa cena que abre – e nos mostra as primeiras nuances – do belo, amável e triste Aftersun (Charlotte Wells, 2022). Com diálogos bem construídos, lindos cenários e uma coerente trilha sonora, caiu nas graças do público e da crítica internacional, e, agora, vem cativando corações em terras brasileiras: estreou na versão brasileira do streaming MUBI e está em cartaz em algumas salas de cinema país afora.
Na trama, um jovem pai e sua filha vão passar os últimos dias das férias dela em um resort na Turquia. Vivendo a maior parte do ano separados, no decorrer desse encontro eles conversam, se atualizam sobre a vida, e turistam em belíssimas paisagens brilhantes, características do verão… até percebermos que estamos diante de um apanhado de memórias remetentes a algum momento congelado num passado distante.
Não demoram a aparecer os relances que anunciam isso, como os cortes que mostram uma Sophie adulta, além de momentos surrealistas nos quais Calum está em todo lugar e lugar nenhum, parecendo preso em acontecimentos desconhecidos e remotos. Esses flashes são só algumas das manchas sombrias feitas em uma pintura ensolarada – pois essa dualidade cai como um balde de água fria. Porém, é ela que torna a carga emocional do longa ainda maior e desconstrói todas as impressões de uma linda história perfeita.
Sol e mágoas
Por um lado, somos apresentados a uma relação fraternal muito afetuosa, de deixar o coração quentinho. Corio e Mescal tiveram uma conexão muito bela, e as cenas entre eles, apenas aproveitando os dias contados de um recesso, são de muita leveza e diversão, tendo vários momentos muito bem humorados. Impossível não sentir vontade de viajar para algum lugar com muito sol, piscina, uma praia bonita e passar as tardes quentes apenas aproveitando o ócio, o dolce far niente. Esse cenário também é o pano de fundo do amadurecimento da protagonista, bem construído a ponto de ser impossível não se sentir próximo a ela diante dos micro-desafios, as pessoas que ela conhece e os momentos que acompanham a idade – um jeito interessante de se desenvolver um coming of age.
Porém, se isso leva o filme para um rumo, outro caminho distinto, mas não conflitante, é o que percorre Calum, o pai cujo passado é desconhecido, mas definitivamente marcado momentos que o atormentam. O homem oscila entre ser carinhoso, presente e comunicativo, mas, em algumas situações, age distante e não dá o braço a torcer, sem conseguir enxergar coisas tão simples na relação familiar (há uma ótima cena em que Sophie o confronta, perguntando por que ele se propõe a comprar coisas desnecessárias para ambos que ele sequer pode pagar) e nas necessidades emocionais da filha, que quase nunca o vê.
Em cada cena do filme, o personagem tenta, entre erros e acertos, ser compreensivo e um bom ouvinte, mas diante dos próprios demônios (e, convenhamos, enquanto ser humano e falho), cria lacunas emocionais e barreiras que fecham seus olhos para não ver, a boca, para não falar, mas não conseguem impedir seu coração de se levar pelos sentimentos que carrega. Aliás, quais seriam esses sentimentos: culpa, carinho, saudade? Seria a pouca idade dele e as expectativas que coloca em si mesmo sobre ser um bom pai? Quantos questionamentos cabem em um personagem que vemos o filme inteiro, mas pouco conseguimos decifrar – assim como a própria Sophie não conseguiu?
À medida que o longa avança, esses contrastes se tornam ainda mais presentes, e a energia nostálgica toma conta, parecendo aquela sensação de quando estamos nos últimos dias de uma viagem muito gostosa – que não sabemos quando ou se faremos uma tão boa novamente. Desperta o aconchego conscientemente limitado de poder tirar um cochilo revigorante em uma poltrona muito confortável de um hotel chique: você não vai viver isso todos os dias da sua vida.
Um adeus e um até logo
E, no caso dos nossos protagonistas, tudo indica que essa atmosfera não voltou a acontecer. Se dar conta disso é um baque que o espectador é preparado para ver, porém não para sentir – pois vem encapsulado num falso “até o próximo verão” acenado entre pai e filha. Sutilmente, tudo dá a entender que Calum e Sophie não se vêem mais, num paralelo entre as cenas que parecem um tchauzinho, mas eram adeus – e como não é dada a certeza de morte, fica ainda pior notar que o distanciamento foi por conta da vida. Se isso fez bem ou mal a eles, assim como vários outros juízos de valor sobre esses personagens, é um mérito para a imaginação de quem assiste.
Além da construção emocional sensível, em aspectos mais técnicos, vale destacar a bem selecionada trilha sonora. Em entrevista para a MUBI, Charlotte Wells mencionou que algumas canções estavam selecionadas desde o início, mas outras foram aparecendo pelo caminho. No fim, todas fizeram muito sentido ali, até mesmo as que, olhando por fora, pareciam muito escandalosas para um filme tão silencioso.
Sob pressão
A maioria delas são hits que marcaram os anos 1990, e All Saint, REM e Catatonia são alguns dos artistas presentes. Além deles, vale destacar o Blur, com a belíssima Tender: a letra traduz bem o sentimento do filme sobre amor, aqui em termos fraternais, a falta dele, e como isso impacta as batalhas que escolhemos. Mas o auge está em Under Pressure (Queen e David Bowie), faixa representativa de um dos momentos mais emocionantes e agridoces do longa. Ali, passado e presente se confrontam, enquanto pai e filha dançam numa catarse que mistura uma realidade na qual não existem mais problemas, apenas uma família estável, com os traumas vividos por ambos.
Aftersun é sobre esse contraste: a forma como guardamos com carinho algumas imaculadas memórias do passado e o que vivemos no presente, tão distante e diferente. Se nas palavras de Belchior, o passado é uma roupa que não nos serve mais, no longa de Wells, ele é uma foto já bem velha registrada num dia que foi uma despedida – eles apenas não sabiam disso ainda. Literalmente.
Confira o trailer do longa
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