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Amados e então odiados pela nação!

Como a cultura do cancelamento vem reforçando a desumanização dos artistas rente aos nossos olhos

Intrinsecamente ligado ao consumo dos mais variados tipos de artes, está a popularização desses artistas. Quanto maior o número de pessoas acessando e consumindo, mais reconhecimento o sujeito produtor receberá. A música e o cinema são fortes combustores para a fama, se não os principais, mas muitas vezes nos descuidamos quanto a diferença crucial entre fama e sucesso.

O sucesso pode ser obtido por qualquer um e tem muito mais a ver com a meta pessoal de cada pessoa, de acordo com a sua realidade e vivência, trata mais da ideia de qualidade e satisfação de uma determinada ação ou função. A fama, por sua vez, tem mais a ver com quantidade e principalmente atualmente, quanto a relevância sobre as massas.

Vemos com frequência artistas sendo destruídos na internet e sendo taxados como esnobes ou, como muito se diz, que a fama ‘’subiu a cabeça’’. Um artista, para uma grande parcela da sociedade, não tem o direito de não sorrir para uma foto por estar em um dia ruim, e menos ainda de negar essa foto. O fato do público ser o principal fator na carreira desses artistas, parece dar passe livre para que as pessoas digam e façam o que bem entender. Tanto que é comum vermos os mais variados comentários inconvenientes, maldosos e até cruéis nos perfis dessas pessoas. A questão que buscos trazer nesse artigo é: por ser uma figura pública, um artista é obrigado a aceitar estar sujeito a passar pelo linchamento – principalmente virtual – constantemente? 

Um argumento muito usado é de que ao se promover a categoria de artista, essa pessoa já tinha em mente qual é o preço da fama, e supostamente o montante de dinheiro e luxúria que esse artista que alcança grandes números recebe, são motivos suficientes para aguentar qualquer barra. Por mais que muito se fale sobre a responsabilidade social dos artistas na sociedade, é notável que há muito tempo nos esquecemos que as pessoas famosas que vemos na televisão e ouvimos na rádio, ainda são, no final do dia, apenas pessoas como nós. Pensando nisso, os documentários têm um papel importante em mostrar a vida de grandes estrelas fora dos palcos e dos holofotes, com dificuldades e problemas, talvez não os mesmos que as pessoas com uma vida fora da fama, é verdade, mas existe uma forma de medir as proporções desses problemas?

Gaga: Five Foot Two (2017) documenta a vida de Lady Gaga, mesclando questões de sua carreira, como a preparação a cerca de seu quinto álbum de estúdio ‘Joanne’ e sua apresentação no Super Bowl LI; e de sua vida pessoal, como a relação com a família e sua luta diária contra a fibromialgia, doença que causa uma intensa dor crônica. Ainda no mundo pop, Miss Americana (2020), traz luz aos bastidores da vida de Taylor Swift. Com mais de dez anos de carreira, a artista sofreu uma onda intensa de ódio não apenas da internet, mas também da mídia, em 2016. Seu documentário mostra como foi para a artista ter que lidar com o sentimento de se sentir julgada, além da relação com a mãe que sofre de câncer e sua recente decisão de se impor politicamente, depois de muitos anos sem se envolver com o assunto.

Reprodução: Netflix

Anitta é um dos maiores nomes da música brasileira atual, e sua série Anitta: Made in Honório (2020) mostra as lutas diárias, todo o esforço e trabalho que a artista precisa ter para conseguir a fama por muitos considerada como sendo fruto de apenas ‘’rebolar a bunda’’ – expressão e imposição não apenas machista, como também sexista. Além de exemplificar o esforço e a vida intensa que um grande artista precisa ter, a cantora mostra ainda as dificuldades que a mulher, de raízes humildes, enfrenta em uma indústria preconceituosa.

Reprodução: Netflix

O endeusamento de celebridades tem ligação direta com a cultura do cancelamento, que consiste basicamente em ignorar a pessoa e o conteúdo produzido pela mesma. Em alguns casos funciona, e o artista tem sua vida pessoal e profissional mudada de forma irreversível; em outras, porém, serve apenas como gás para esses artistas conseguirem produzir conteúdos melhores e alcançar mais sucesso e consequentemente mais dinheiro. Porém, as celebridades que colocamos em pedestal como seres incapazes de errar, são de carne e osso e também estão em constante evolução e suscetíveis a erros. Uma ideia de perfeição criada é imposta a essas pessoas, que inevitavelmente acabam por fazer ou dizer algo que não agrada a massa, e passa a ser considerada cancelada.

Como todo ser humano vai acabar cometendo algum equívoco, deixou-se de ser uma questão de quem será cancelado, para quando será cancelado. E qualquer pequeno detalhe pode ser crucial.

Na série Black Mirror, o episódio ‘’Odiados Pela Nação’’ emitido em 2016, traz a história de duas detetives que se veem encarregadas de investigar a misteriosa morte de uma jornalista, que vinha sendo massacrada nas redes sociais após escrever uma matéria polêmica. Ao longo do episódio (contém spoiler) descobrimos que um jogo envolvendo uma hashtag estava decidindo quais pessoas seriam mortas. O nome mais usado junto da hashtag: ‘’#mortea(…)’’, seria morto no final da tarde através do uso da tecnologia avançada. Como? Bem, versões mecanizadas de abelhas que estavam sendo utilizadas para equilibrar o ecossistema após o inseto estar quase extinto, e é a partir dessa tecnologia que um homem revoltado com a sociedade consegue tomar o controle desse meio. Assim, as abelhas mecanizadas recebiam um comando para se infiltrar no cérebro das pessoas escolhidas pela hashtag e levá-las ao nível mais intenso de dor, levando o sujeito a causar a própria morte por não suportar mais tanto sofrimento. No fim do episódio, descobrimos, porém, que o plano desse revoltado é ainda mais macabro. Todas as pessoas que usaram a hashtag para apontar quem deveria ser morto, acaba com uma das abelhas em seu cérebro, realizando um imenso massacre. Com suas ressalvas, é basicamente uma exemplificação da cultura do cancelamento em escala maior, mais grave e macabra. 

Reprodução: Netflix

O intuito deste artigo não é de forma alguma minimizar os erros das celebridades, mas de vê-las com olhos humanos. Acredito fielmente que estamos suscetíveis a esses erros pela simples necessidade de evolução como ser humano racional e pensante. Se o sofrimento de outra pessoa não nos atinge, isso parece dar liberdade para despejar qualquer tipo de comentário maldoso e insensível, o que muitas vezes pode ser o gatilho extremo para alguém que pode já estar vivendo um inferno. O ponto principal é pensar que moral temos para apontar o dedo para o outro, independente de sua posição social e financeira.

Algumas atitudes e comportamentos são indiscutivelmente errados, passíveis de punições na justiça perante a lei que visa os direitos de cada cidadão, mas quando se trata de erros que podem facilmente ser superados com uma boa pesquisa e aprendizado sobre o assunto, existe mesmo a necessidade da criação de uma fogueira para queimar toda a vida dessa pessoa e de sua família? Será que nós, cidadãos comuns que nos achamos no direito de chutar uma figura pública, se estivéssemos ao lado de uma delas, seríamos assim tão certos e justos quanto acreditamos que somos enquanto fazemos nossa lista de julgamentos um atrás do outro? É necessário mudança se desejamos um futuro melhor para as próximas gerações, e por mais difícil que elas pareçam.

Em sua música ‘’Show and Tell’’ a cantora Melanie Martinez faz alusão a questão da indústria da música e da fama que vive diariamente. Fechamos esse artigo com uma das frases que resumem muito tudo abordado aqui e que possa talvez levantar alguma reflexão.

‘’Você diz palavras cruéis, e sim, elas quebram meu coração

Porque eu estou aqui me esforçando muito.

Por que é tão difícil de enxergar? (Por quê?)

Se eu me cortasse, eu sangraria (me mate)

Sou como você, você é como eu (uhum)

Somos imperfeitos e humanos, não é?

Mostre e diga

Estou em exibição para todos vocês (…) verem

Mostre e diga

Palavras duras se não tirarem uma foto comigo

Compre e venda (me compre e me venda, amor)

Como se eu fosse um produto para a sociedade

Arte não vende

Só se você ferrou todas as autoridades’’

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