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Cinedica | A sociedade da Neve

Concorrente ao Oscar de melhor filme internacional, A sociedade da neve é muito mais do que um filme de sobrevivência

Dirigido por J.A.Bayona e distribuído pela Netflix, a história do acidente aéreo uruguaio de 1972 chegou novamente às telas no fim do ano passado, recontando a tragédia conhecida por muitos como o milagre dos andes. Mas, afinal, do que se trata essa história?

Em 1972 um avião uruguaio se acidentou na cordilheira dos Andes enquanto carregava 45 passageiros, os quais incluíam uma equipe de rugby, seus amigos e família. Foi devido a um erro de cálculo do piloto, que estimou o tempo de descida equivocado, que 29 desses 45 passageiros se viram presos e condenados a sobreviverem em condições climáticas extremas, sem auxílio médico e pouca comida. A trama segue então a jornada desses 29 passageiros que, ao final da excursão, se tornaram apenas 16.

Reprodução: A Sociedade da Neve

Já tendo sido contada e recontada inúmeras vezes ao longo dos anos, as histórias sobre esse trágico acidente aéreo foram consideradas umas das mais difíceis de serem abordadas, devido aos seus temas controversos. Das múltiplas adaptações feitas, se destaca a de 1993 Vivos, na qual Frank Marshall conta os relatos sob o protagonismo de um único personagem e dramatiza a história para que esta se encaixasse nos moldes de um filme de ação hollywoodiano, levantando então descontentamento por parte dos sobreviventes. 

J.A. Bayona traz de volta às telas então uma nova adaptação, baseada no livro de mesmo nome A Sociedade da Neve, de Pablo Vierci. Ao longo de 10 anos, o diretor espanhol se empenhou em estudar os relatos da época e, por meio de entrevistas com os sobreviventes e familiares dos falecidos, conseguiu abordar a história de maneira respeitosa e mais próxima da realidade possível. Conhecido por dirigir projetos de temáticas difíceis como O Impossível e Sete minutos depois da meia-noite, Bayona conseguiu abordar o enredo com uma sutileza magistral, dando ênfase na união e solidariedade criadas pelas dificuldades vividas na montanha, sem deixar de lado também o terror experimentado pelos sobreviventes.

O diretor espanhol recria a história com uma exatidão surpreendente. Ele inicia o longa estabelecendo seus personagens base, dando um foco maior à equipe de rugby presente no voo e sua animação ao poder viajar rumo ao Chile com seus amigos e familiares. Os primeiros 15 minutos do filme contrastam de forma assustadora com o acidente que aconteceria com o voo 571. O diretor recria aquele que é, sem dúvida, um dos acidentes de avião mais realistas e horríveis já exibidos no cinema, estabelecendo imediatamente os horrores que estão prestes a acontecer com aquele grupo despreparado de sobreviventes que, após serem deixados à própria sorte em um lugar onde a vida é impossível devido ao clima extremo, devem encontrar soluções criativas para ajudar os feridos, encontrar água, comida e, mais urgentemente, encontrar uma saída.

Reprodução: A Sociedade da Neve

As adaptações anteriores haviam focado sua narrativa nos pontos de vista de Nando Parrado (Agustín Pardella) e Roberto Canessa (Matías Recalt), dois integrantes do acidente que conseguiram sair da montanha a pé em busca de ajuda para o resto do grupo. Embora seja um retrato bastante épico da história, Bayona opta por não fazer isso, para evitar dar protagonismo a membros específicos do acidente, já que os sobreviventes relataram inúmeras vezes que todos eles tiveram um papel importante em sua passagem pela montanha.

O diretor estabelece sua narrativa principal através de Numa Turcatti (Enzo Vogrincic), que era amigo de um dos membros da equipe e que, apesar de não conhecer a todos, se tornou uma peça fundamental para a história. Numa permite Bayona de relatar o enredo através dos olhos de um forasteiro. Dotado de uma sensibilidade e determinação surpreendente, este personagem relata aos espectadores a narrativa de uma forma quase imparcial, mas cheia de emoção, fazendo com que a história ganhe um peso muito mais forte. Sendo assim, A sociedade da neve foge do padrão de filme de ação e sobrevivência e escolhe focar mais na união vivida pelos integrantes do vôo. 

Bayona consegue então realizar este filme de maneira magistral ao abordar a história sob uma perspectiva que não é muito óbvia. Ele não foca nos “heróis” da trama, mas dá importância a todos que estiveram na montanha. Dessa forma, o diretor presta homenagem aos falecidos, da mesma forma como relembra os sobreviventes, mencionando o nome de todos à medida que a história vai se desenvolvendo. Além disso, Bayona e sua equipe fizeram um processo seletivo minucioso com os atores, selecionando-os de acordo com sua personalidade e aparência, a fim de que fossem o mais próximos possível da realidade.

Reprodução: A Sociedade da Neve

É graças às atuações sensíveis por parte de todo o elenco que o longa é capaz de tocar os corações dos espectadores de uma maneira fundamental para a história. Em conjunto com a trilha sonora fantástica de Michael Giacchino, o público é levado a compreender o terror pelo qual aquele grupo de amigos passou, apesar da situação tão inusitada na qual eles se encontravam. O elenco, composto por atores uruguaios e argentinos, foi capaz de abraçar os personagens com realismo e sensibilidade, tanto que em diversas entrevistas os próprios sobreviventes disseram que eles foram capazes de se ver e sentir que haviam voltado no tempo devido às suas atuações. 

Uma das temáticas mais abordadas pelas adaptações passadas e documentários feitos sobre o caso, foi a questão de como os sobreviventes tiveram que recorrer ao canibalismo para continuarem vivos. Muitos relatos externos criaram teorias conspiratórias sobre a decisão dos passageiros, sugerindo que estes teriam feito rituais religiosos a fim de justificar sua decisão, resultando então em antropofagia ao invés de canibalismo. Entretanto, Bayona escolheu não dar um foco muito grande nesse aspecto da trama, e preferiu demonstrar a decisão dos passageiros como essencial para sua sobrevivência. Dessa forma, a decisão de alimentar-se dos corpos dos falecidos se transformou apenas em mais um ponto crucial da trama e o diretor conseguiu abordar esse momento com uma sensibilidade e respeito essenciais para realizar uma homenagem emotiva para todos aqueles que não sobreviveram ao acidente, sempre deixando claro que foi graças a eles que os outros 16 chegaram vivos em casa.

Reprodução: A Sociedade da Neve

A Sociedade da Neve convida então o público a se emocionar com a jornada deste grupo de amigos que, apesar de qualquer expectativa, conseguiram superar todas as barreiras que surgiram em seu caminho. Dotado de um realismo chocante, a trama nos apresenta cada um desses personagens com seus medos, memórias e habilidades que possibilitaram salvar o grupo mais um dia. É através dessa amizade que vemos florescer em meio às adversidades que somos levados a compreender a magnitude dessa tragédia e a determinação que o grupo teve em sobreviver por tanto tempo em um ambiente tão hostil.  

Não é de se espantar que este longa foi nomeado para inúmeros prêmios. Desde sua direção, atuação, trilha sonora até os seus efeitos especiais e técnicos, tudo foi feito com excelência e honrou a memória de todos que estiveram presentes. A Sociedade da Neve traz à memória um relato de peso, que é exemplo e ressoa até hoje graças à coragem e determinação daqueles que voltaram para contar a história. Ver este longa é poder entender um pouco do foi estar naquela montanha, entender o quão resistente nós conseguimos ser e como 16 dos 45 passageiros voltaram da morte para se reencontrarem com a vida.

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