Reinterpretação do clássico shakespeariano balanceia uma tarefa difícil: manejar uma releitura com mudança de perspectiva e anacronismo. E acerta em cheio.
Verona, ano de mil quinhentos e … alguma coisa. Uma adolescente mimada é acordada por uma governanta sarcástica (Mimi Driver s2) sendo avisada que seu pai havia arrumado mais pretendente marido. Desanimada com a ideia, ela se levanta mesmo assim para se arrumar, mas começa a relatar aos suspiros sobre seu verdadeiro amor: Romeu.
Mas a adolescente em questão NÃO é Julieta!
Assim começa o longa da Hulu, subsidiária da Disney cujas produções no Brasil costumam circular, como é o caso de Rosaline, na Star+. Roteirizado por Scott Neustadter e Michael H. Weber, e dirigido por Karen Maine, a proposta do filme era resgatar uma personagem que não foi aprofundada na obra original e trazer uma nova abordagem para uma das histórias mais conhecidas e reproduzidas de todos os tempos: Romeu e Julieta, de Shakespeare.
Estou aqui para te convencer que, apesar de algumas críticas negativas – algumas válidas, outras nem tanto -, Rosaline alcança seu objetivo e é uma ótima escolha para os dias de ‘cobertinha no sofá’.
O elenco é um dos primeiros grandes acertos, apesar de ser uma parte das críticas mais recorrentes também. Kaitlyn Dever, que interpreta a protagonista cujo filme carrega o nome, é o grande destaque e conduz muito bem essa personagem que, ao decorrer da obra, faz rir, gera simpatia para si, começa a perder a simpatia e gerar certo ódio e, ao fim, é redimida. Esse arco faz com que ela seja a mais humanizada do longa.
Apesar do tom predominantemente cômico e do destaque de Rosalina, os outros personagens – e seus atores – não ficam para trás. Mimi Driver, queridinha das adaptações e reinterpretações de época (Uma Garota Encantada e Cinderela de 2021), interpreta a ama da protagonista com muita nuance, mesmo com pouco tempo de tela. O mesmo se dá para Nico Hiraga, que interpreta o mensageiro Steve, a Julieta de Isabela Merced, o Romeu de Kyle Allen e Sean Teale dando vida a Dario.
Todo esse papo de elenco nos traz ao primeiro embate. Alguns espectadores na internet não gostaram de Rosaline porque sentiam que o filme era mais do mesmo e com a mesma pouca diversidade de outros anteriores a ele. A primeira crítica válida que rebato.
É verdade que, no núcleo dos personagens principais, a maioria é branca. Mas é falso que personagens de cor ou de “diferentes” orientações sexuais não compõe e completam esse núcleo de maneira substancial e não estereotípica, muito importante ressaltar. Temos uma Julieta latina, coadjuvantes importantes para construção do contexto da trama racializados e dois personagens, em especial, com sexualidade não heteronormativa – um deles inclusive meio ‘escrachado’, mas propositalmente e que entretêm sem passar dos limites. Além do aspecto mais importante: a protagonista, por vezes “dolorosamente” branca, é também retratada assim com um propósito e sua branquitude privilegiada é, de formas sutis, colocada em cheque ao decorrer da narrativa.
Válido ressaltar o sutil, já que a representatividade do filme não se encontra dentro da coerência interna do texto, como caixinhas de diversidade a serem completadas e explicitamente expostas ao público. Simplesmente faz parte dessa reconstrução anacrônica de Verona, o que é um trunfo para o longa.
Falando na reconstrução da cidade e de anacronismo, tá na hora de falar de um das características mais difíceis e facilmente ‘desencarrilhaveis’ que a obra acerta: o anacronismo. Principalmente por meio da linguagem contemporânea mais “geração Z”, Rosaline traz diálogos, comportamentos e comentários irônicos modernos para uma base medieval.
É algo controverso. Nem todos gostam quando essa modernização gradual é feita – eu mesmo, que vos escreve, no geral, não sou muito fã -. Mas, quando é bem feita, o resultado é espetacular, o que é o caso.
Essa modernização ajuda a conferir nuance e humanidade aos personagens, é um dos fatores condutores do humor do filme e ajuda a construir uma imagem para o público que o filme pretende deixar claro: o longa por vezes traz tópicos e tem um tom sério; fala sobre feminilidade e matrimônio, um pouco sobre feminismo liberal que precisa ser colocado em cheque – que a empatia por uma donzela branca acaba quando às custas de uma quebra de sororidade e respeito com outra personagem, sobretudo, nesse caso, de cor – e, a mensagem mais forte, uma reflexão sobre o que é o amor belo, épico, digno de ser recontado e procurado por todos. Mas ainda é uma comédia romântica de adolescentes, e que, no meio de questionamentos sérios, cabe e deve-se ter também leveza e humor.
Ao contrário do que alguns representantes da crítica profissional afirmam, esse elemento de leveza não tornam a narrativa rasa. Faz dela o clássico bem executado, e são esses que viram referências para o público e que geram conexões emotivas com a sétima arte.
Outra crítica feita por um nicho específico do público, os espectadores mais engajados com a obra teatral original, é que Rosalina não é assexual no longa de 2022 e isso é problema… Deixa eu contextualizar isso para você!
Rosalina de fato existiu no texto de teatro de Romeu e Julieta. Romeu se apaixonou por ela brevemente antes de conhecer Julieta; inclusive, indiretamente, essa personagem que nem tem falas na obra original, é o cúpido indireto do casal fictício mais famoso de todos os tempos. O que acontece é que o jovem Montecchio desenvolve uma paixão pela donzela que não é correspondida. Ele vai ao famoso baile de máscaras para encontrá-la, mas esbarra em Julieta. O resto é a história que todos conhecemos.
Interpretações modernas da área do teatro especularam e construíram uma Rosalina com mais profundidade e, nessas construções, uma personagem assexual, cujos interesses são ambição “profissional” e senso de propósito com o trabalho e não com o matrimônio, foi idealizada. Uma perspectiva certamente interessantíssima; me convidem se alguma releitura teatral clássica tiver essa abordagem, mas a quebra de expectativa de um ciclo específico não tira nem um pouco os méritos daquilo que a produção se propôs; uma crítica com mais nuance do matrimônio executada com muito êxito.
Isso inclusive é um papo nosso para o futuro, caro leitor, mas uma adaptação/releitura literária não é pior ou ruim só porque mudou detalhes da narrativa que os fãs “não acham certo”. [Alerta opinião impopular]
Mas, para fechar com chave de ouro e te vender esse peixe de uma vez por todas, retomo o que disse lá em cima, sobre a mensagem mais forte do longa.
Romeu e Julieta é com certeza a cara daquele amor idealizado: épico, platônico e trágico. Sua beleza se encontra na sua intensidade, na rapidez com que ele é formado e na angustiante impossibilidade de ser consumado. Histórias incríveis podem ser construídas sobre essa premissa, mas ela está longe de ser a realidade da maioria dos amores que desenvolvemos na vida, além de ser um ideal tóxico a ser perseguido.
[Alguns Spoilers]
Um amor como o de Rosalina e Dario, construído aos trancos e barrancos – aquele enemies to lovers que a gente adoooora -, e que não tem pretensões épicas, não é necessariamente um ideal alternativo perfeito, mas atesta que o amor que devemos perseguir é construído nas pequenas interações do cotidiano, nas provas de que um se importa e quer estar ao lado do outro.
Sua beleza e seu valor estão na consciência mútua dos sentimentos de um pelo outro, e não precisa ser uma performance, uma história como nos livros e filmes épicos. É intimista, imperfeito, sincero… e é real. E, como canta a gigante Elis Regina, viver é melhor que sonhar!
Trailer:
Esse texto foi escrito enquanto a autora escutava:
Como nossos pais – Elis Regina
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