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Cowboy Bebop

O passado é uma tragédia inescapável?

Cowboy Bebop é um daqueles clássicos que só me permiti assistir recentemente e agora me acompanha como um fantasma. Resumindo a trama de forma superficial, vamos acompanhar um grupo de personagens que são cowboys especiais, ou seja, o anime mistura ficção científica com um ar de faroeste, e assim, vamos acompanhando esse elenco disfuncional no dia a dia, existem episódios com mais ação, outros mais rotineiros, e uma trama que não se preocupa em ser megalomaníaca. Ela não é e nem quer ser aquelas histórias de vinganças ou de heróis, como da Marvel, que no final parecem ser sobre um absoluto nada, ela é sobre essas pessoas, e mais diretamente, sobre a dificuldade de viver e se relacionar, quando só pensamos no passado.

Spike é um homem sempre com o olhar distante, uma espécie de ex-mafioso, que agora vive com Jet, que é um ex-policial, de certa forma, essa dualidade entre ambos determina como essa relação funciona, eles se compreendem, pois ambos estão fugindo do quem um dia foram. E nisso tudo entra Faye, uma mulher cheias de dívidas, e diferente do elenco, ela só não olha para o passado como alguém para se esquecer (e se descobre incapaz de tal ato), mas como algo para se desejar, de buscar incansavelmente um passado, uma vida, que não mais existe, e o desespero de perceber que não importa o quanto queiramos, no máximo, vamos conseguir fragmentos dessa vida que não nos pertencem mais. E ainda tem Ed, um garoto ou uma garota, o anime nunca se dá ao trabalho de explicar e não dá razões para tal, ninguém sabe e ninguém se importa, Ed é Ed, um/uma hacker da terra, que é agora um planeta que foi assolado por uma grande catástrofe, é por isso que os terráqueos se espalharam pelo espaço.

Reprodução: internet

Com o elenco apresentado, é hora de revelar o motivo que essa obra tanto me segurou.

Spike é um homem que nunca sentiu medo da morte, até se apaixonar. O amor entra como um fator decisivo para perceber o quanto podemos perder e o quanto podemos ganhar. Esse romance nunca é o foco, o pós sim, quem você é depois de temer a morte? Quem você é depois de amar de verdade? E existe um jeito de escaparmos da solidão do nosso próprio passado? O perdão é real? Eu não sei nenhuma dessas respostas, apenas vislumbres com esses personagens.

Spike é assombrado, incapaz de viver o presente, impossibilitado por ele mesmo de enxergar o futuro, não importa o quanto ele se movimente durante o anime, ele está sempre pisando nos mesmos locais. Ele não almeja perdão, não sente mais vontade de viver e almeja e não almeja mais o amor. Ele vive na carcaça de tudo que ele sentiu e de tudo que ele perdeu, talvez a caçada de ladrões, os perigos, a falta de dinheiro, as conversas que nunca são sinceras, sempre são cheias de sentimentos não revelados, de questões que não são tratadas, sejam sua forma de sobreviver.

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Spike não existe, termino o anime percebendo que não conheço o homem que acompanhei na obra, vi espaços da sua vida no presente, partes dela do passado e sua decisão sobre seu futuro, porém, em nenhum momento, ele retirou sua máscara, talvez por um único segundo no final do anime, exceto essa possibilidade, ele foi apaco, frio, invisível para si mesmo e para nós. É por isso que ele combina com Faye, ela é uma mulher que não consegue se lembrar do próprio passado, depois de um problema grave, ela foi mantido numa espécie de sono, seu corpo preservado, e muitos anos depois, ela foi acordada, sofre um golpe, perde seu dinheiro e agora precisa lidar com pessoas, em um mundo que é mais amplo, o espaço, as possibilidades infinitas, uma mulher que usa sua própria sensualidade a seu favor, mas que é triste.

Faye, apesar de ter uma nova chance de viver, sem se lembrar das próprias angústias de seu passado, algo que muitos gostariam, é atormentada por isso, o não saber, aquilo que para muitos seria um milagre, é para ela uma maldição, que a paralisa, deixa ela incapaz de viver o presente, de aproveitar e criar uma nova vida, afinal, como ela pode viver sem saber quem é o fantasma que a acompanha? Como ela pode viver sem saber quem trouxe ela até aquele ponto? Como ela pode viver sem reconhecer o seu antigo eu?

Esses dois são os personagens do elenco que mais me pegaram, o presente em suas vidas mudavam, tinham acontecimentos, eles vivem o cotidiano, mas eles não se transformam, pois em suas mentes, eles vivem num looping, pensando e repensando naquilo que eles perderam, nas coisas que eles não sabem como resolver, o tempo passa, questões acontecem, tudo muda, eles deveriam mudar, mas permanecem iguais apesar de tudo. Incapazes de esquecer, incapazes de superar, enfiando o dedo na ferida para que ela não cicatrize, a dor é necessária, a dor mantém todas aquelas questões ainda vivas, independente de quanto tempo passe.

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Spike e Faye estão no mesmo processo, buscar uma solução pra algo que já se passou, mas lidam de forma diferente. Ele se fecha para o presente, não quer vivê-lo, não quer sentir emoções, quer fugir de qualquer coisa que o afasta da dor de um assunto do passado. Já Faye vive o presente e quer uma resolução para o passado, para conseguir sentir paz.

Meu episódio favorito do anime é o único em que acompanhos Faye encontrando algo de seu passado, um vídeo gravado por ela mesma. Suas lágrimas escorrem enquanto ela observa essa desconhecida que tem o seu rosto, sua voz, seu jeito, vivendo, mas aquilo que mais me envolveu nesse episódio, foi a forma que a antiga versão dela fala na gravação, ela fala sabendo que não existirá mais, ela fala sabendo que todos mudamos e que ela mudará, e logo, uma nova versão dela vai existir, com outra mentalidade, com novas memórias, com novos objetivos e crenças, e como ela está em paz com isso, em como ela apenas deseja felicidade para sua futura versão e que ela estará sempre torcendo por ela, mesmo que isso signifique desaparecer. A antiga versão de Faye, com apenas uma única memória, consegue entregar aquilo que ela precisava, uma solução, suas memórias não voltam, ela ainda não sabe como foi viver toda aquela vida, e talvez ela nunca saiba, só que agora ela sabe que está tudo bem, que não existe nada de errado em continuar vivendo, mesmo sem saber se é a maneira certa ou errado, que aquelas outras versões dela que desapareceram, independente da capacidade de se lembrar ou não, torcem por ela, deixaram suas marcas invisíveis, levaram ela até o começo do caminho que agora ela trilha, que não importa mais o passado, tudo se foi, tudo se acabou e tudo se alterou, agora só depende dela. Faye, diferente do Spike, para de olhar para o passado e se concentra em olhar para ao seu redor, para perceber as pessoas, a família, tudo que ela já tem e consegue deixar esse peso, as dúvidas ficam, claro que ficam, mas a dor se esvai.

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Somos seres com uma tendência esquisita de obsessão, seja pelo passado ou pelo futuro, vivemos vidas que já se foram ou vidas que ainda não aconteceram, tudo isso em nossas mentes, segundos, minutos, horas, dias, semanas e meses nesse jogo, perdendo tempo com tudo que somos incapazes de controlar. Assim como Faye, nunca mais vamos ser quem um dia fomos, não podemos voltar para versões que ainda não cometeram erros que nos assombram ou versões que achamos mais dignas, puras, imaculadas de tudo que torna o mundo podre, é necessário aceitar aquilo que alguns chamam de pecados e outros de erros, e as transformações que todas essas escolhas fizeram em tudo que somos.

Podemos aprender como Faye que nem tudo é tão importante quanto achamos, que está tudo bem chorar por aquilo que perdemos, e de rir pelo presente, de que podemos continuar vivendo, não existe nada de errado em viver depois de todos os erros, podemos aprender, falhar e aprender novamente, porque não estamos paralisados, podemos lutar contra nossas próprias mudanças, mas o tempo está sempre mudando. Spike fica como um alerta da facilidade de viver no passado, de nos tornarmos incapazes de viver nossas próprias vidas, decisões e de conviver com outras pessoas, um dos seus olhos, aquele sempre voltado para o passado, é o decisivo e essa é a sua tragédia, viver no passado cobra um preço alto, que é perder o próprio presente.

No lugar de aprender com ele, retornar, e retornar as mesmas memórias, aos mesmos acontecimentos, e sempre correr pisando nos mesmos degraus, independente das consequências que isso traga para sua vida, é importante tomar a escolha que ele nunca teve coragem de fazer, a escolha de desapegar de algo que já foi tão importante e que se perdeu de nós. O anime mostra esses dois personagens, que carregam medos e receios, Faye utiliza toda essa dor pra prosseguir com sua vida, Spike não está pronto para qualquer coisa verdadeiramente nova. Com o tom melancólico e músicas de jazz, o anime me fez transbordar e pensar em tudo que eu sou, uma espécie de casa assombrada ou apenas um ser feito de camadas e mais camadas, com novas que vão surgindo e outras antigas que começam adquirir poeira, mas todas me trouxeram para onde estou, e sei que ainda existem outras mudanças, que o controle, não de tudo, mas de algumas decisões, ainda são minhas.

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Muitas pessoas são como o Spike, pessoas que ainda são atormentadas demais por tudo que já ocorreu, e preferem isolar e gastar toda sua energia olhando para o passado, e nunca pensando no futuro, nunca vivendo o presente, e sinceramente, não vou e nem estou em posição de julgá-los, apesar de triste, é compreensível, como é dito no filme Com amor, Van Vogh:”Viva bastante e você verá, a vida é capaz de derrubar até o mais forte.”

Muitos escolhem o passado, viver é aceitar que será constantemente ferido, que a vida irá nos derrubar várias vezes, que alguns planos vão ser pra sempre planos, mas nessa, esquecemos que outros sonhos vão se realizar, algumas coisas nem sonhos eram, pois a vida tem uma forma estranha de sempre surpreender, de acabar trazendo um sabor doce para os nossos lábios quando só estamos conhecendo o amargo, de criar uma leve esperança em nossos peitos, quando tudo que queremos é apenas dormir, talvez seja no simplório, talvez seja em algo gigante, mas quando permitimos viver o presente, sempre vamos correr o risco de viver mais uma aventura maravilhosa, mesmo que seja acompanhada com a dor, estamos mudando, sempre em metamorfose, sempre tendo visões novas sobre quem somos e tudo aquilo ao nosso redor, seja observando o passado, seja sentindo o presente, é impossível se manter estagnado, ou seja, aproveite a paisagem, aproveite sua jornada, sinta, pois no final, sempre sempre será sobre você. Afinal, estamos presos em nossa própria carne, em nossa própria mente. E depois, para todos será o mesmo, seja o mais rico, seja o mais pobre, é impossível escapar dos braços da morte, cedo ou tarde, ela chega e nos leva. Aproveite a jornada, coloque uma música jazz para tocar, dance com as pessoas que você ama, cante alto, corra rápido, seja gentil e amável, seja feliz, é tudo que podemos fazer num mundo que às vezes é apenas miserável.

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