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CRÍTICA | ARGENTINA, 1985

O julgamento que revelou horrores da ditadura militar argentina contado de uma maneira sóbria, responsável, que consegue tanto informar quanto emocionar o telespectador.

América Latina. Palco de alguns dos espetáculos mais sangrentos da história da humanidade. As suas veias foram violentamente abertas pelas facas mais afiadas do imperialismo e do neoliberalismo. Algumas seguem jorrando sangue latino até hoje. São feridas de difícil cicatrização e, provavelmente, nunca vão sarar totalmente. Outras sangrias foram emergencialmente estancadas, mas o batimento é de tamanha intensidade que ainda vazam gotas o suficiente para encher um oceano. O próprio cinema como arte encontrou muita dificuldade de continuar existindo em momentos de repressões violentas durante os períodos das ditaduras militares latinoamericanas, mas se reinventou e resistiu aos ataques. Argentina, 1985, de Santiago Mitre, busca retratar um momento chave da história do continente no processo de redemocratização do país após a ditadura militar. E o faz com uma maestria e uma sobriedade que tornam a obra um clássico imediato do cinema político.

O filme discorre sobre o julgamento das Juntas Militares, órgão supremo da ditadura militar argentina, acusada de brutal repressão ilegal entre 1973 e 1983. Durante o processo de redemocratização do país, o presidente eleito, Raúl Alfonsín, determinou que os ex-comandantes das Forças Armadas fossem julgados em tribunal por crimes contra a humanidade. Para lidar com essa árdua tarefa, foi nomeado o controverso promotor, Júlio Strassera (Ricardo Darín) que, junto com seu braço direito,  Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani), montaram e lideraram uma ambiciosa equipe de jovens procuradores. A maioria dos advogados veteranos com os quais normalmente trabalharia ou tinha medo ou era fascista. Os princípios ideais dos novatos e a crença na mudança da realidade foram determinantes para o trabalho. Juntos, eles conseguiram reunir mais de 700 relatos de testemunhas de crimes cometidos pelos militares.

Apesar da história ser contada a partir da perspectiva dessas duas figuras centrais (Strassera e Ocampo), ela é feita de uma maneira pouco romantizada, muito ponderada e responsável com a memória do povo argentino. Não opta por chocar ou sensacionalizar os ocorridos, mas sensibiliza, tamanhos foram os horrores cometidos durante esse período. “A história não é feita por pessoas como eu”- diz um Strassera que conhecemos em suas nuances mais íntimas: as suas controvérsias por conta da sua omissão no período ditatorial, seus receios em relação ao julgamento por conta de questões familiares, suas suspeitas e paranóias em relação ao namorado da filha,  suas certezas e convicções em relação ao processo e a sua equipe. O tempo todo ele nos lembra que é apenas um funcionário fazendo o seu trabalho porque julga que é o moralmente certo. Ocampo, um advogado muito jovem e idealista, questiona algumas atitudes de seu parceiro, ao mesmo tempo que é questionado por conta da ligação da sua família com os militares. Os personagens, especialmente os “protagonistas” são retratados de uma forma muito humanizada, sem idealizações e tentativas de eleger um grande salvador da pátria: cada um tem as suas complexidades e contradições. 

É um aspecto muito presente a confluência entre o drama social e o drama político. Alternam-se e complementam-se em uma abordagem muito ampla. Strassera, interpretado brilhantemente por Darín, teme pelos filhos e pela esposa, demonstra muita relutância para aceitar o caso e incerteza ao lidar com a equipe, sofre ameaças constantes e até pensa em desistir em dado momento. Ocampo batalha pela aprovação da sua mãe, que o despreza por se envolver no caso, mas reconhece ao final que talvez o seu filho esteja fazendo a coisa certa. Há quem diga que a forte inserção desse contexto pessoal acaba enfraquecendo o contexto político. Mas o que acontece é justamente o contrário: mostra que a vida política dos personagens não são alheias àquilo que acontece dentro de casa e vice-versa. Um influencia diretamente o outro. Consegue balancear com maestria o drama familiar, a ação no grupo de promotores e o suspense no tribunal. É assim que o cinema constrói a ambientação e imersão daquela época. Mostrando como as incertezas e os dramas de um dos momentos mais importantes da história do país impactam no cotidiano do seu povo. Argentina, 1985 faz isso com muita naturalidade. O diretor Santiago Mitre faz um mergulho histórico profundo para recriar a Buenos Aires de 1984 e nos apresenta em detalhes uma cidade perdida economicamente, em constante tensão, com uma pátria ainda em processo de redemocratização e reidentificação.

As emoções contidas nas microexpressões faciais de Darín. Foto: Divulgação Amazon Prime

A junção de todos esses elementos citados contribui para a construção de uma atmosfera dramática muito intensa que busca provocar no telespectador um enorme impacto emocional. A performance de Darín, aparentemente manso e pacato, permite que o espectador perceba a sua dimensão de humanidade e a sua preocupação com as vítimas e as famílias. A sua responsabilidade com elas crescem conforme ele percebe a dimensão dos crimes cometidos. Por meio da sutileza de alguns gestos e micro expressões faciais ele torna visualmente perceptíveis as pressões e as sensações provocadas por uma atuação sóbria e contida, tanto pelo contexto jurídico no qual a narrativa se desenvolve, mas que é brilhante pela intensidade que deposita nesses pequenos detalhes. Em termos técnicos, a intercalação de close-ups expressivos e panorâmicas das expressões dos personagens no tribunal contribuem enormemente para essa dramatização. Em um dos momentos mais marcantes do filme, a leitura do o relatório “Nunca Más”, um documento com as denúncias de desaparecimentos, sequestros e torturas acontecidos no período, Darín consegue emocionar sem nenhum esforço ou movimento exagerado. Apenas com a leitura, com o olhar e a respiração é capaz de transmitir a sensação de alívio e levar a audiência à catarse.

Além disso, outros momentos e aspectos destacam o poder emocional do filme. O depoimento dramático de uma mãe que deu à luz em um camburão militar, após ser torturada durante a gravidez. A presença das Mães da Praça de Maio no tribunal- uma associação de mães que tiveram seus filhos assassinados durante a ditadura- e os seus lenços brancos em volta da cabeça ressaltam simbolicamente ao público os horrores daquele período. Quando lhes é pedido que tiram os lenços, torna-se nítida o poder de influência que elas têm. A utilização de imagens de arquivo é pontual e poderosa para a recriação imagética fiel e para criar um vínculo emotivo com o público. São diversos recursos estéticos e soluções criativas encontradas para potencializar a história de forma muito natural e sensível. Mitre consegue encontrar uma boa saída para tratar de um assunto muito complexo e dialoga com diversos públicos. Resgata um momento histórico e o conta de maneira cativante, informando e emocionando com muita habilidade. Ele desenvolve uma história que fala para o povo argentino, mas que encontra reverberações e sensibiliza quem vê de fora. Os próprios diálogos são pensados para a internacionalização, sem se prender a uma linguagem que seria acessível apenas ao público argentino. Não é à toa que o filme encontrou uma repercussão muito positiva da crítica em escala global, e é o representante do cinema argentino no Oscar. É uma obra que trata de um momento particular, mas é totalmente compreensível por quem está alheio aos fatos.

Manifestação das Mães da Praça de Maio. Reprodução: Internet

Por isso, para além de um excelente filme, Argentina 1985 é uma excepcional ferramenta de estímulo de debate político e de desenvolvimento do pensamento crítico. Em um momento de delírios antidemocráticos e tentativas contínuas de revisionismo histórico, é de extrema importância que se resgate a memória do povo, a história como ela aconteceu e não como ela é contada pelos “vencedores”. Argentina 1985 é um marco simbólico, uma necessidade e uma lição a ser aprendida. Strassera diz que “a paz deve ser forjada não no esquecimento, mas na memória” e isso significa que não devemos deixar que os crimes de humanidade cometidos ao longo da história, principalmente aqui na América Latina, sejam jamais ser esquecidos. Nesse sentido não há como não traçar um paralelo com o nosso Brasil: a sua ferida não cicatrizada da escravidão, os horrores não sanados da ditadura militar e a recente ascensão de alas fascistas são perigos que devem ser lembrados e combatidos a todo o momento para que não se repitam, para que esses caminhos de destruição nunca mais sejam visitados. Lembrem-se sempre que a memória é a arma mais poderosa contra a barbárie.

Assim como Roma (2018) trouxe holofotes para o cinema mexicano, Argentina 1985 também é um chamado para uma maior valorização da produção latinoamericana, especificamente o cinema argentino, tamanha a qualidade, a delicadeza e a profundidade com a qual a obra é concebida. Mas esse interesse despertado não pode se encerrar nesse filme, precisa que seja expandido para além dele, porque na América Latina são produzidos excelentes filmes. Apesar da pouca divulgação da própria plataforma que o disponibiliza, o filme conseguiu atingir um público muito além do esperado, muito por conta da iniciativa dos próprios telespectadores via redes sociais. Inclusive, um dos grandes pecados do filme é que ele não foi exibido nas telas de cinema, porque uma obra de tamanha importância histórica e política merecia ter o seu acesso facilitado para absolutamente todas as pessoas.

Confira o trailer:

Nota:

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