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Crítica: Coringa (com spoilers)

O sorriso de uma sociedade doente

 

Uma obra-prima da sétima arte. O longa acerta em cheio o tripé do cinema – atuação, roteiro e direção. Não se limitando a ser a origem de um vilão, sendo mais um drama psicológico e social. Todd Phillips (diretor e roteirista) teve uma maior liberdade dada pela Warner e utilizou ela para trazer uma obra de ponta. Não espere ver um filme do gênero normal, pois ele te convida para uma outra experiência, mas que com certeza vale a pena.

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é a identidade desse Coringa, habitante e vítima de uma Gotham doente. Ele trabalha como palhaço de dia e a noite tenta ascender a comediante de stand-up.

 

ATENÇÃO: a partir daqui os spoilers são gratuitos, CUIDADO!

Joaquin Phoenix e o SEU Coringa

Nos primeiros dois minutos, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) está se maquiando enquanto de fundo o áudio com as notícias de crime e problemas da cidade contextualizam o ambiente da história. Ele se maquia com tons quentes de vermelho e azul, com uma pintura circense por baixo. O close dessa cena mostra ele no espelho e mantém parte de trás da sua cabeça fora do enquadramento, dando um toque de foque na personalidade refletida. Ali ele tenta dar um sorriso. Utiliza das mãos para puxar os lábios e dar um riso plástico, mas o reflexo tristonho do seu olhar faz escorrer uma lágrima, borrando a maquiagem. Por sermos apresentados à essa cena bem no começo do filme não sabemos o quanto ela nos diz. Há tudo do filme apenas nela.

De início, parece que teremos uma origem clássica de vilão, onde o mundo bate na pessoa até quebrá-la. Mas como o próprio filme é. Ele nos surpreende.

Coringa é um dos vilões mais famosos e complexos do universo dos quadrinhos. No cinema, cada ator trouxe uma versão dele: Heath Leadger, com seu personagem anarquista e calculista; Cesar Romero em uma versão mais infantil nos anos 60; e os outros trazendo cada um a sua versão. Joaquin Phoenix entra para esse hall trazendo um personagem louco, instável e ao mesmo tempo possuidor de certa inocência. Atuando de forma impecável, com 23 quilos a menos, ele caracteriza uma forma física assustadora. Cadavérico, cicatrizes pelo corpo, coluna reclinada, ombros fechados – ele passa a visão de alguém quebrado, moldado com todos esses acontecimentos, só assim para dar lugar a um personagem tão complexo como o Coringa. Movimentos pouco naturais e harmônicos. Nos seus momentos em que ele consegue fugir do mundo pesado que o rodeia, ele se entrega para a dança; sem camisa e desengonçado, ele mostra a caracterização física dele.

Não apenas seu corpo está quebrado, mas sua alma agoniza, carregando uma tristeza inimaginável e uma carga de experiências traumatizantes. Reflexo de uma criança que cresceu sem lar e foi levado para um ambiente familiar doentio, onde sofria abusos e abandono, Fleck é fruto de tudo isso e mais uma alienação parental. Vivendo e cuidando de uma mãe doente, que lhe fazia viver junto com as loucuras delas (como a da paternidade dele), se ornando coadjuvante delas.

Um palhaço tem a risada como parte de seu show e o Phoenix acerta de uma forma estrondosa. Arthur Fleck possui um distúrbio psicológico onde ele ria em inúmeras situações mesmo não achando graça – essa doença existe e é chamada de “crise de epilepsia gelástica” – e cada uma risada dele é diferente, conseguindo transparecer angústia, raiva, e todo o sofrimento que vem, gerando um contraste entre o riso e a tristeza. Quando ele está indo para a sala do seu chefe, ele dá uma risada gutural no corredor que é estrondosa, de uma forma que você sente a loucura dentro daquela figura.

Joaquin Phoenix está à altura de um Oscar em sua atuação.

 

 

Uma obra prima do cinema

O começo dos acertos de Phillips se dá com a escolha do período dos anos 70 e 80, caracterizando uma Gotham suja, afundada na miséria e nos problemas sociais. O longa abusa de tons escuros e sobriedade para mostrar o ambiente em que viveu o vilão – nota-se que os tons mais claros ao longo da história aparecem nos momentos onde Fleck se mostra na sua ingenuidade, como quando ele está se vestindo de palhaço e praticando suas danças, utilizando das cores em diálogo com os momentos do personagem. A iluminação também faz uso desse quesito nas partes das crises de riso dele, onde as luzes tendiam a falhar, passando um ar de perturbador a cena.

Utilizando de mais closes, ele busca passar o drama em cada feição de Arthur – aliado a belíssima atuação, vemos os sentimentos por trás da face e dos olhos de um homem que tenta ver e transmitir alegria, mas falha. Isso faz com que a proposta de abordar o drama dos problemas pessoais do vilão de forma particular seja atingida com sucesso. Outra jogada de câmera, que foi mais um acerto do diretor, foram as utilizações de contra-plongée (filmar de baixo para cima), fazendo com uma figura tão frágil assuma o ar de superioridade, transformando-o em alguém acima do mundo à volta, alguém além dos princípios e estigmas que o rodeiam.

Há cenas e mais cenas que trazem muita coisa em sua subjetividade. Não irei falar todas claro mas deixarei a visão sobre duas aqui. A primeira, logo no começo do filme, é quando ele é espancado por adolescentes em uma viela no meio de lixos e poças de chuva. Ela é uma cena para trazer você para perto do personagem – que por ser um vilão tem como tendência afastar o público – para você sentir pena daquele palhaço espancado. Essa proximidade foi feita para que você sinta mais as emoções dele e tenha um impacto maior com a sua evolução durante o longa.

A segunda é as duas cenas da escada. Phillips utiliza da subjetividade para tratar elas como escadarias da ascensão e queda: com um primeiro momento dele fugindo ao cometer os primeiros assassinatos, e no próximo ele está no ápice da origem da figura do vilão – sendo o momento que ele se auto descobre e esse torna o Coringa – ele desce. Em uma cena icônica, em um slow motion épico, se libertando e mostrando uma alegria antes não vista. Esse é o momento de eclosão do personagem, da origem da figura Coringa. Na descida, há um metáfora da decadência moral e social, com um enquadramento da luz na parte de cima da escada, como se ele tivesse se afastando na direção contrária à luz. E, por fim, a cena termina com ele correndo da dupla de policiais, uma forma de fazer com que o espectador que está na hora tão conectado com a passagem, veja que ele ainda é vilão – sem heroísmo.

A Warner deu liberdade para Todd Phillips no filme, para que o diretor e roteirista fizesse uma obra sem se basear em nenhuma HQ específica – apesar de haver elementos de algumas presentes. Ele também evitou a conexão com o universo da DC em si, não fazendo nenhuma grande referência a outro herói, nem filme, e utilizando apenas Gotham City e a Família Wayne para ambientar o universo. Isso fez com que ele tivesse mais liberdade para trabalhar o vilão em si. Phillips e Scott Silver (de O Vencedor) fizeram um roteiro onde a loucura tem um papel narrativo muito grande, mergulhando na psique do personagem. O que, na minha opinião, é uma questão de abordagem arriscada devido ao peso social, a temáticas de saúde e por dificuldade em conseguir transpassar essa loucura em tela. Entretanto, a atuação e o roteiro foram impecáveis, atingindo o objetivo desejado.

Um filme maduro do universo da HQs e que a DC estava devendo para seus fãs.

 

 

Polêmica sobre a violência e os dias de hoje

A violência e o drama psicológico do longa dividiram críticos e público. Com medo de ser um incentivo à violência, em meio a um mundo onde massacres com armas por indivíduos com problemas psicológicos ou extremismo politico são frequentes. Em 2012, um desses crimes ocorreu na exibição de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge, deixando 12 mortos e 70 feridos. O cinema do ocorrido afirmou que não passará o filme diante do protesto das vítimas e parentes do massacre passado. Esse grupo de pessoas enviou uma nota para a Warner, pedindo para que uma parte do arrecadamento do filme seja revertido para as vítimas de 2012. Essa foi a resposta do estúdio:

“Violência com armas de fogo é uma questão crítica na nossa sociedade e estendemos nossos mais profundos sentimentos a todas as vítimas e famílias que foram impactadas por essas tragédias”, disse o estúdio, lembrando que tem um longo histórico como doador em casos envolvendo vítimas de violência, incluindo os afetados em Aurora. “Ao mesmo tempo, a Warner Bros. acredita que uma das funções de contar histórias é provocar conversas difíceis sobre questões complexas. Não se engane: nem o personagem ficcional Coringa, nem o filme são um apoio à violência no mundo real”.

Após artigos de opiniões ligando o filme a um possível incentivo de massacres de armas de fogo e Incels* –  termo para “celibatários involuntários”, homens que culpam a sociedade por não conseguirem se relacionar com as mulheres -, o FBI e o exército americano disseram que tomaram medidas preventivas. Já em Nova Iorque, a polícia montou um esquema de segurança com policiais à paisana nas salas de cinema durante a semana de estreia.

Incels*: termo inglês que designa “celibatas involuntários”, isto é, pessoas que se consideram incapazes de encontrar um parceiro sexual e amoroso e que culpam a sociedade por isso valendo-se de argumentos misóginos.

Todd Phillips e Joaquin Phoenix também comentaram sobre a polêmica:

“O filme trata da falta de amor, trauma da infância e falta de compaixão no mundo. Acredito que as pessoas conseguem aguentar essa mensagem”, afirmou ao IGN. “Para mim, a arte pode ser complicada e, às vezes, a arte é feita para ser complicada. Se você quer arte descomplicada, talvez você deva ter aulas de caligrafia, mas fazer cinema é sempre uma arte complicada”.  – Todd Phillips

“O que aconteceu em Aurora é obviamente uma situação horrível, mas mesmo aquilo não foi culpa do filme. Francamente, você pode fazer sua própria pesquisa sobre Aurora, que o cavalheiro não estava nem vestido como Coringa, isso foi um engano. Seu cabelo estava pintado de vermelho e ele estava obviamente em meio a um colapso mental e foi algo terrível, mas não há relação a não ser ter acontecido em um cinema”, Phillips afirmou à Associated Press.

“As pessoas interpretam mal letras de músicas, passagens de livros. Então não acredito que seja responsabilidade do cineasta ensinar moralidade ou a diferença de certo e errado. Quer dizer, para mim, isso é óbvio”, Joaquin à IGN.

À Vanity Fair, ele ainda disse: “há tantas maneiras de olhar para o personagem. Você pode vê-lo como alguém que, como todo mundo, precisa ser ouvido, compreendido e ter uma voz. Ou você pode dizer que é alguém que precisa de uma quantidade desproporcionalmente grande de pessoas fixadas nele. Sua satisfação vem enquanto está no meio da loucura”.

Já especialistas de cinema e também da área da psiquiatria também deram suas opiniões sobre a questão polêmica.

O maior perigo para a sociedade pode ser não ver esse filme. As questões que ele levanta são tão profundas, tão necessárias que se você desviar o olhar da genialidade dessa obra de arte irá desperdiçar a reflexão que ela oferece”. – O documentarista Michael Moore escreveu em seu facebook.

Acho essa discussão boba e inconsequente. Estamos tratando de cinema, de ficção, que tem a liberdade de criar o que quiser, pois não tem compromisso social e sim cultural. Coringa não é um personagem com posição política alguma. É um indivíduo que está vivendo em desespero.” – Professor de cinema da PUCRS, Eduardo Wannmacher.

O filme mostra que a violência contemporânea é resultado de um processo histórico social e coletivo. Não creio que estimule a violência. O mundo já está violento antes do filme.” – Oscar D`Ambrosio, jornalista e doutor em educação.

O filme não legitima nenhuma atitude. Porém, o problema vem quando a nossa sociedade que precisa cada vez mais de juízo, e não o contrário, resolve imitar a arte – e sim, esse risco existe. Ao ser lançado, um filme não é mais do diretor ou da equipe e sim do que a cabeça de cada espectador interpretar daquilo. Isso é um problema. Porém, eles não estão isentos de responsabilidade, deve se buscar passar uma interpretação daquilo de forma que as pessoas entendam que aquilo é um caso particular e que não se trata do todo. Fazendo com que evite-se vertentes erradas de absorção e delas saiam ideias erradas.

 

 

Uma sociedade patológica

Queria deixar aqui uma parte da crítica de Érico Andrade – filósofo, professor da Universidade Federal de Pernambuco – onde prefiro trazer as palavras dele na íntegra. “Numa sociedade onde reina o imperativo da felicidade ser obrigado a rir é paradoxalmente uma condenação que na forma do distúrbio psíquico de Arthur Fleck nos faz refletir sobre o nosso adoecimento. Será que a grande loucura não seria nos obrigar a sermos felizes diante de um quadro de pobreza e injustiça? Sobretudo felizes segundo as normas do gozo que o capitalismo impõe como os aplausos encomendados nos programas de auditório? Um gozo pronto para o consumo. Diante de tanto apelo à felicidade como realizar a fantasia do prazer eterno na forma do riso quando rir é um ato compulsório?”

A arte imita a vida” – Aristóteles

Coringa traz de uma forma bem didática não só a construção de seu personagem, mas também uma crítica social pesada. O que nos tornamos? O que o sistema faz conosco? Todas essas são questões abordadas com muita ênfase no filme. Ele é uma releitura do mundo em que vivemos, principalmente das sujeiras e das hipocrisias. O próprio Arthur Fleck fala sobre essas críticas. Ninguém consegue escutar ninguém. Todos estão sempre com pressa e cegos às dores alheias. Ninguém é mais dono do seu tempo, mas sim escravo dele. O personagem começa tendo uma vontade de controlar e tratar sua psicose, tomando suas medicações e focando no seu sonho de stand-up. Ele tenta ser gentil, caridoso, sociável. Porém, à sua volta, as pessoas não têm empatia e cada vez mais o tratam mal, gerando uma fortaleza de solidão da qual Arthur usa para se proteger. Ninguém está disposto a ajudar essa mente traumatizada a ser saudável.

Esse abandono social aliado aos problemas de sua infância fazem com que um homem simples, com sonhos simples, se torne um agente do caos. O caos… Coringa não é o criador do caos como aponta o policial na cena da viatura no final – ele é fruto do caos. Dessa sociedade contemporânea que lhe massacra, que lhe bate inúmeras vezes e no final prega que devemos estar sempre felizes e em busca da felicidade. A forma como ele ataca o sistema em rede nacional, utilizando da metáfora do show de Murray, onde se faz felicidade da ridícula vida dos outros. “Vale tudo para arrancar um sorriso no grande sistema do vale tudo” (Érico Andrade).

A exigência de uma vida feliz no erro.” – Theodoro Adorno.

No final, ele é tido como um revolucionário pelos oprimidos. Colocado como o rosto do movimento desde que ele matou três ricos no metro, inflamando a população que culpa os privilegiados pela miséria. Na cena final, ovacionado por todos, ele sente que conquistou a sua platéia. Pela expressão de seu rosto, aquele é o ponto máximo (junto com a cena da escada) de autodescoberta. Ele literalmente colocou o circo para pegar fogo.

E dessa sociedade, dessa cidade, dessa história se tem em outro ponto: a morte dos pais de Bruce Wayne em decorrência do tumulto. O surgimento de um agente do caos leva ao nascimento de um herói.

A ficção do longa é apenas um retrato da sociedade contemporânea. Você sentará na sua cadeira de cinema, esperando desfrutar de um entretenimento e sairá chocado, como se tivesse tomado um soco no estômago. A tristeza, a angústia, a violência, a brutalidade, a pobreza, a sujeira. Tudo isso incomoda, enoja, choca. É a mensagem que o filme passa para o telespectador. Um filme que traz uma reflexão e faz você sentir aquilo com força. O cinema é uma arte e arte incomoda várias vezes. Esse filme não foi feito como uma crítica à grande máquina do sistema, mas sim ao combustível dela. Você! A você que se escraviza ao sistema. A você que não tem empatia. A você que não olha os outros. A você que só vive na pressa. A você que nega suas emoções em prol da eterna busca à felicidade, que o sistema usa para te iludir. Abra os olhos, olhe a tua volta como tudo está tão sujo.

Por vezes as pessoas não querem ouvir a verdade, por que não desejam que suas ilusões sejam destruídas.” – Nietzsche.

CONCLUSÃO: Uma obra prima da arte do cinema. Se você está indo em busca de uma simples adaptação dos quadrinhos, prepare-se para o choque que você terá. Se trata obra densa que traz um drama pesado e críticas sociais da sociedade contemporânea. Não se trata de um produto de entretenimento comum, mas sim de algo complexo. Se você é um apreciador de cinema é inegável a maestria do filme.

 

 

Nota do filme:

5 pipocas

 

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