Manhatthan: a ironia do romance- uma crítica do filme de Woody Allen
Escrito por: Kedma Muniz/ Leia também em: https://link.medium.com/4cbn5ejKQ7
“Manhatthan” tem um protagonista incomum. A cidade de Nova Iorque, capturada por Gordon Willis, conhecido como “Mestre das sombras” justamente por seu trabalho com a cinegrafia em preto e branco, é banhada de poesia, romantismo e deslumbramento — nítido contraste com a própria vida amorosa dos personagens nessa descontrução do gênero comédia romântica.
A cidade é ao mesmo tempo palco e personagem. Palco pois é o único elemento em comum de todos os personagens; e personagem, pois parece hora juntar certos casais, hora afastá-los . Existe nisso certa magia , onde a cidade parece encarnar a divindade romana de Cupido, gerando paixões incontroláveis nos atingidos por suas flechas. Mostra disso é o papel importante que a cidade tem nas cenas de Isaac e Mary, quando estes estão juntos no planetário ou pedalando no lago ou ainda, diantes da ponte. Suas silhuetas bem desenhadas de forma quase lúdica e pouco realista dizem muito mais sobre o romance do casal do que suas próprias palavras. Assim, Woody Allen consegue construir e revisar o gênero romântico, pois a confusão emocional dos personagens também ridiculariza suas situações. Não existem mocinhos e mocinhas, afinal. Nem um casal pra se torcer.
Interessante observar também as ironias do filme. Uma primeira ironia está presente na forma como os personagens lidam com suas emoções. O personagem mais bem resolvido tanto na escala emotiva quanto no que deseja profissionalmente é Tracy, uma garota de 17 anos que está mudando de país para estudar artes cênicas. Ela consegue observar com certa racionalidade suas situações e ajuda a tornar evidente, dentro da narrativa, outra ironia que o filme trabalha: a supervalorização da intelectualidade e erudição. É por causa dessa intelectualidade vazia que Mary está em uma relação desconfortável para ela mesma e a estupidez dessa questão pode ser vista em cenas em que todos os personagens estão discutindo, sejam questões filosóficas e existenciais, ou de arte – como a cena do museu. Tracy observa tudo com calma e sem comentários, uma ingenuidade facilmente atribuída à sua idade mas que expõe a estupidez de todo o “mundo dos adultos”. Como Isaac expressa em certo momento para Mary: “Você conhece muitos gênios, podia conhecer alguém estúpido de vez em quando. Pode te fazer bem”.
O filme consegue, afinal, harmonizar uma fotografia excelente com uma trilha sonora que oscila entre o jazz e as músicas de filmes do início de Hollywood, construindo uma atmosfera agridoce. Em tempos em que os filmes produzidos querem dar cada vez mais independência a essas áreas- a fotografia ou a musicalidade- talvez seja bom revisitar essa obra. Nela podemos perceber individualidade e contraste, harmonia e desconforto em prol de uma narrativa poética e impactante e principalmente, única.