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Crítica: Olhos Que Condenam

A nova minissérie da Netlix, Olhos Que Condenam, recria e escancara um dos maiores absurdos da justiça dos Estados Unidos

 

[ALERTA SPOILERS]

Em 19 de abril de 1989, Trisha Meili, uma mulher de 28 anos, enquanto corria pelo Central Park, foi estuprada, violentada e abandonada em estado crítico que a deixou em coma por 12 dias. Olhos Que Condenam (ou When They See Us, no original), série dirigida por Ava DuVernay, conta a história de cinco garotos que foram acusados e pagaram por esse crime mesmo que a única relação deles com o caso era estarem no Central Park.

Linda Fairstein, da Divisão de Crimes Sexuais, conduziu a investigação e gerou um dos maiores casos de injustiça da história dos Estados Unidos. O fato é que a promotora escolheu para Judas cinco adolescentes como supostos culpados, ignorando por completo a inconsistência das acusações e a falta de provas que ligassem eles ao crime. O resultado foi Korey Wise, Kevin Richardson, Raymond Santana, Antron McCray e Yusef Salaam cumprindo pena entre sete e quinze anos, mudando o rumo de suas vidas, até o verdadeiro culpado se entregar em 2002.

DuVernay, no entanto, nessa minissérie, não está interessada em esclarecer os pormenores do caso ou mostrar a linha temporal dos acontecimentos na noite do crime. Seu foco é a brutalidade policial e as marcas psicológicas deixadas nos acusados e em suas famílias. É tocar na ferida de um dos maiores absurdos da história americana. É perceptível o grande senso de reparação da série, uma determinação em fazer com que a experiência daqueles jovens injustiçados seja sentida. Por isso, a falta de sutileza parece ser algo proposital – afinal, nada nesse caso foi sutil.

A série faz uso de imagens reais do presidente Donald Trump (na época, já milionário) que atiçou a opinião comprando páginas inteiras de jornais e aparições na televisão para pedir pena de morte aos meninos então suspeitos. A decisão de usar imagens reais de Trump, e não de refazer os anúncios com algum ator, é uma clara provocação ao atual presidente dos Estados Unidos. É um ato de resistência que sugere a verossimilhança da minissérie, que conta uma história do passado, com a realidade atual.

Apesar de ter apenas quatro episódios, a minissérie transmite um cansaço e agonia ao telespectador que a faz parecer muito mais longa. É como se acompanhássemos de verdade o processo pelo qual aqueles adolescentes passaram. Por isso, cada um dos episódios serve a um propósito. Cada um evidencia sob um ângulo diferente todos os absurdos e barbáries que esse jovens enfrentaram e como eles foram privados de qualquer autonomia e até mesmo direitos básicos.

No primeiro episódio, a diretora foca em sua crítica à força policial da cidade de Nova York por seu comportamento violento, até com menores de idade, e também em sua incompetência e tendenciosidade na hora de resolver o caso. No episódio seguinte, acompanhamos os julgamentos dos garotos e é revelada a imagem de Trisha Melli em seu estado após o ataque que sofreu. É exemplar a forma como foi filmada sua entrada no tribunal, atestando o sofrimento da vítima e a apelação dos advogados de acusação em expor a imagem dela daquele jeito. A cena nos coloca em conflito e nos lembra que os injustiçados ali não eram apenas os cinco réus.

Já no capítulo três, passaram-se os anos e vemos como quatro dos cinco garotos estão atualmente. Agora, todos adultos, eles enfrentam o desafio de tentar recomeçar a vida com o preconceito, os conflitos emocionais, a dificuldade de arrumar emprego e todas as marcas que a sociedade imprimiu neles.

E, para finalizar, o epílogo da série ficou reservado basicamente para retratar a maior tragédia de todas: a trajetória vivida por Korey Wise. O garoto, por já ter 16 anos, foi para um presídio de adultos, onde observamos todo seu sofrimento e sua força diante de tudo que ele é posto a prova. E o mais interessante e forte dessa fase do enredo é a resistência que todos eles têm quanto à pressão para assumir o crime, pois eles têm convicção de que não cometeram – Korey chega a recusar a liberdade em condicional, porque, para isso, ele precisaria assumir a culpa.

A série inteira carrega uma carga pesada e o roteiro não poupa o espectador de encarar de frente o desespero e a injustiça. Lágrimas, gritos de desespero e socos contra mesas e paredes são enfatizados com closes de câmera e pausas dramáticas. Além disso, mistura de elementos ficcionais com cenas e discursos reais da época dá uma toque a mais na produção, deixando tudo mais realista e arrebatador.  É emocionante ver o apoio popular aos meninos, por parte da comunidade do Harlem, em oposição a toda a imagem construída pela polícia e pela mídia. Um dos momentos mais bonitos da minissérie é os jovens com suas famílias caminhando em direção ao tribunal rodeados de pessoas com cartazes denunciando o racismo e abuso de poder claros no caso.

Uma decisão da produção que causa certo incômodo inicial é o fato de história ser contada com superficialidade durante período de reclusão da maioria dos meninos, acompanhando com maior profundidade apenas Korey Wise. Tal formato deixa uma sensação de lacuna que rapidamente é preenchida ao decorrer do enredo, quando entendemos o peso da história de Korey e a importância para o desfecho do caso.

Outro fato curioso é que todos os meninos são representados por dois atores – um mais jovem, no início do caso, e um mais velho, quando eles saem do cárcere – com exceção de Wise, que durante toda a minissérie é interpretado por Jharrel Jerome. O que, no entanto, não causa dano algum, pois a caracterização e performance do ator é tão incrível que o menino parece realmente ter envelhecido, se transformado quase em outra pessoa.

Olhos que Condenam é uma verdadeira obra de arte – é brutal, dolorosa, revoltante mas impecável. A série conta uma história verídica de um crime que começou com uma vítima e terminou com seis. Assim, acima de tudo, a série é clara na mensagem que quer passar. Aponta o dedo não só a Donald Trump, mas ao governos dos Estados Unidos, à sociedade e ao sistema prisional que, juntos, falharam, não só com a mulher violentada, mas com os cinco jovens, desde o primeiro momento.

Sem dúvidas era uma história que merecia ser recontada e merece ser assistida.

 

 

https://www.youtube.com/watch?v=InMokMK3ji4

 

 

Nota da minissérie:

 

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