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Crítica| Onde Está o Meu Coração

A dramática série da Globoplay provoca, sensibiliza e nos oferece um olhar mais humanizado sobre o vício em drogas.

“O vício é o efeito de um mundo doente, não a causa”, diz Carl Hart, professor de neurociência da Universidade de Columbia. As origens do vício estão nas condições de uma vida ruim. As drogas podem causar dependência e até a morte se utilizadas de uma forma errada, mas não são elas que causam os problemas da sociedade. A estrutura social que vivemos nos condiciona ao excesso de positividade e provoca em nós depressão, ansiedade e outros problemas psicológicos e psiquiátricos. São eles que levam às drogas, pois ao consumí-las, têm-se a falsa sensação de que esses problemas desaparecem e não ocorre busca pelo tratamento.

Em “Onde Está O Meu Coração”, nova série dramática da Globoplay, conhecemos Amanda Meirelles (Letícia Colin), uma jovem médica de classe alta que, por intermédio de seu marido, começa a ter contato com o crack. A jovem começa a fazer uso contínuo e irresponsável da droga de maneira que afeta gravemente o seu trabalho e a sua vida pessoal, tanto com o marido, usuário não-viciado, quanto com seus pais e sua irmã. Os motivos que podem ter levado Amanda ao uso contínuo de crack são muitos, entre eles o excesso de cobrança e trabalho, a pressão de ter a vida das pessoas nas suas mãos e ver a morte de perto diariamente, mas o ponto central da narrativa é o quanto o uso da substância atinge a sua vida.

Hart, através de seus estudos, observa que se uma pessoa com qualidade de vida usar drogas diariamente, dificilmente ela será considerada dependente, pois continuará realizando as suas atividades. Para ele é uma questão de acesso a empregos de qualidade, educação, alimentação e participação efetiva na sociedade. A estigmatização traz a ideia de que o usuário médio está as margens da sociedade e não em nossos bairros ou locais de trabalho. Mas Amanda está entre nós impedida de realizar por completo as suas atividades. Sua relação com a família piora, seu casamento se fragiliza, seu desempenho cai e ela passa a não mais utilizar a pedra apenas como uma válvula de escape, mas a viver em função dela.

No entanto, o tratamento vem de forma violenta e estigmatizada. A família de Amanda, pelo desespero de ver sua filha livre das drogas e com condições de retomar sua vida, opta por interná-la. Mas, o contato inicial de Amanda com a clínica é bruto, causa um choque. Não é uma abordagem humana e comportamental, como defende Hart. Embora a família tenha concordado com a internação, são constantes as discordâncias quanto a forma de abordagem entre o pai, com senso de urgência muito duro, e a mãe, mais tolerável e flexível. Isso acentua ainda mais a fragilização e tensão das relações familiares por conta do vício de Amanda.

Através de uma magnífica interpretação da personagem, Letícia consegue expor tudo que sente a Amanda, em todas as suas fases de recuperação: desde o êxtase do primeiro uso, até o drama da dependência e a ânsia de usar de novo e cada vez mais, além da calmaria e leveza de estar limpa. É um papel que requer muita intensidade e a atriz entrega com louvor. Além dela, Fábio Assunção (Pai) e Mariana Lima (Mãe) cumprem com esplendor os seus papéis e revelam os riscos de não falar abertamente com os filhos sobre vício em drogas e a exposição ainda maior ao consumo irresponsável. Ao mesmo tempo, é nítido o zelo e preocupação que têm pela filha e estão dispostos a tudo para ela ficar bem. Fábio admite reviver os seus dramas pessoais para construir esse personagem, o que torna a sua atuação ainda mais sentimental e simbólica.

Para que os atores pudessem desempenhar os papéis com tamanha magnitude, há um grande trabalho de Direção Artística de Luisa Lima. A câmera na mão de Amanda sempre que a personagem deixa a sensação de perseguição tomar conta intensifica ainda mais a experiência imersiva. Além disso, a perda de foco da câmera é um recurso muito utilizado para auxiliar e engrandecer ainda mais o trabalho de Letícia e companhia.

A trilha da série é recheada de músicas calmas, sentimentais e reflexivas, como “Mora na Filosofia”, de Caetano Veloso, “Into My Arms” de Nick Cave, e “My Way” de Frank Sinatra e, apesar da escolha das músicas ser muito boa e combinar com a proposta da série, a repetição massiva de alguns trechos pode vir a se tornar irritante. Prepare-se para escutar o piano solo de Nick Cave pelo menos umas três vezes por episódio.

Onde Está O Meu Coração” é um drama realista e contundente que busca mostrar diferentes aspectos de uma vida afetada pelo uso contínuo e irresponsável de drogas e, apesar de querer se apressar demais na passagem de alguns momentos, mostra com clareza e intensidade e crueza os impactos dessas substâncias na vida profissional e pessoal. A série provoca e sensibiliza e nos convida a ter um olhar mais humanizado sobre o vício e reinserção de dependentes químicos na sociedade. Importante para pensarmos nos problemas causados pela estrutura social que adoecem as pessoas e as fazem buscar nas drogas uma válvula de escape. 

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