Clássico instantâneo de terror experimental rompeu as barreiras do nicho e se aventurou com um público bem diferente do habitual. Conheça um pouco sobre esse filme que está dividindo opiniões.
Um dos fenômenos culturais e comunicacionais mais incríveis possibilitados pela internet é poder observar quase que instantaneamente o contato de uma obra artística com um público bem diferente daquele que normalmente o procura ou a quem é destinado. Recentemente, ocorreu um processo parecido com o filme Skinamarink, lançado em 2022, que gerou muita repercussão nas redes sociais e foi bastante comentado tanto por aficionados pelo terror experimental quanto por telespectadores que até então tinham tido pouco contato com obras do tipo e, portanto, estavam pouco acostumados com a linguagem cinematográfica que o filme usa. Esse choque entre diferentes realidades e universos culturais é muito interessante porque gera impressões muito diversificadas sobre os significados construídos por uma determinada peça artística e torna Skinamarink um filme único no que se propõe: sua escolha de direção o configuram como um filme de extremos. Difícil de se explicar e mais ainda de se esquecer. Ame-o ou odeie-o. Ninguém fica indiferente diante dele.
Skinamarink é a externalização visual do que o inconsciente coletivo interpreta como um pesadelo nostálgico. É um retrato do maior medo de algumas crianças: ficar sozinho em casa sem os pais. Kevin (Lucas Paul) e Kaylee (Dali Rose Tetreault), acordam sozinhos em casa, na cidade de Alberta, no Canadá, quando descobrem que as janelas e as portas de toda a casa sumiram e eles não têm mais nenhuma noção do tempo. Com aproximadamente 4 e 7 anos, respectivamente, a única solução possível diante de uma situação dessas é pegar todos os brinquedos e ir para a sala de estar assistir desenho animado. As crianças logo percebem que alguma coisa muito séria aconteceu com os seus pais e que há alguma presença estranha na casa. O diretor, Kyle Ball, busca evocar essa sensação do sobrenatural invadindo o cotidiano e lembrar aos adultos como é ter medo do escuro quando se é criança, quando a sua própria casa parece se tornar mal-assombrada, repleta de perigos a cada canto. Talvez não seja sobre a existência factual de assombrações, mas sobre como a imaginação infantil é fértil o suficiente para criar assombrações para além do factual e fazer com que elas existam e ganhem vida própria enquanto ideias que causam medo e provocam sensações. Podem ser frutos de uma situação delicada que as crianças estão vivenciando ou até mesmo uma válvula de escape para não ter de lidar com o problema diretamente. O filme é ambíguo o suficiente para abrir espaço para a interpretação individual de cada telespectador.
Como disse, Skinamarink é um filme de extremos e isso reflete nos recursos estéticos utilizados para a gravação do filme. A câmera é estática na maioria das vezes e foca em áreas abertas ou detalhes, enquanto podemos ouvir o som do ambiente, crianças brincando, conversando ou fazendo qualquer outra coisa. Cantos, tetos, carpete dos corredores e luzes com mau contato. A câmera olha para todos os lugares da cena, menos para os sujeitos. Omite os seus rostos. Tenta mimetizar a perspectiva de uma criança que sempre parece não ter noção do que está acontecendo e que ainda não tem ferramentas interpretativas suficientes para digerir a realidade. Tudo que nós temos são impressões, vislumbres, pedaços dos personagens que estão envoltos na escuridão constante e na granulação da imagem. As sombras parecem dançar diante dos nossos olhos, convidando-nos para moldá-la, recortá-la e criar rostos, formas e paisagens a partir do que ela nos dispõe: trevas. Como quando somos crianças e temos a sensação de enxergar no escuro algo que talvez não esteja ali de verdade, mas nossa imaginação tem certeza de que sim e acreditamos nela porque talvez seja nossa principal fonte de informação. Procuramos achar algo na escuridão. Qualquer coisa. Para alimentar nossa imaginação e para que nossos olhos continuem pregando peças em nós. Em alguns momentos, a câmera muda, como se estivesse no ponto de vista de Kaylee ou de Kevin. São os momentos em que temos alguma noção do agravamento da situação que eles vivem. A ausência de edição permite uma maior imersão do telespectador naquilo que vê, aumentando a sensação do medo sendo percebido por uma mente que ainda não racionaliza o mundo. Esse jogo de câmeras também é uma tentativa da mente buscar conforto em uma situação estressante. Skinamarink é um experimento de trauma sendo colocado na tela.
O filme não tem trilha sonora, os sons são frutos de invenção ou de imaginação. O filme preza pelo mistério e pelo aspecto fantasmagórico (ou onírico) de seus personagens. Recebemos apenas as suas vozes desencarnadas. Em alguns momentos, as palavras não são reconhecíveis e entendemos apenas pela atitude ou pela legenda. Coisas que parecem pedidos, na verdade são demandas. Há momentos em que não queremos escutar o que está sendo dito porque as linhas cruéis sugerem violência implícita. Existe uma inversão de foco. Conversas avulsas e aparentemente com pouca conexão são usadas como pano de fundo, a estática apresenta uma ambientação sonora enlouquecedora. O som da televisão, o eco das vozes normais e moduladas, passos nos cômodos, barulhos de brinquedos, batidas altas, tijolos tombando. Esses elementos são usados para criar uma atmosfera específica de pesadelo e envolver o espectador até o limite, fazendo com que ele se identifique cena após cena com as crianças e tome para si os medos delas, a cautela para não fazer barulho para não incomodar a presença na casa e a súplica pelo retorno dos pais. O medo e as incertezas causados por um evento traumático que as crianças não digeriram ainda. A vida delas parece querer se ancorar à uma ilusão de normalidade mesmo sabendo que tudo está por mudar. O desespero provocado por um grande deslocamento daquilo que um dia esteve cheio de vida e movimento e passa por um momento de completo esvaziamento e isolamento. A sensação de que algo está faltando, uma paranóia da ausência. Tudo está de cabeça para baixo.
Literalmente, os móveis e as cadeiras da casa inteira estão de ponta cabeça, como um simbolismo para representar essa grande mudança que tanto atormenta o ambiente familiar. Não foi um fantasma, nem uma entidade, nem uma força demoníaca que causou isso, mas, sim a concretude da realidade material que não aguentamos olhar diretamente quando somos crianças, às vezes nem quando somos crescidos. Recorremos à criatividade e à imaginação para suportar. Uma cena no final do filme mostra um corredor depois que uma legenda sugere que as crianças estão lá há mais de um ano. As fotos continuam de cabeça para baixo e se afasta gradativamente como uma memória dissolvendo. Uma tentativa desesperada de encontrar nas lembranças e nas memórias algum conforto de como a vida era antes do trauma, mesmo que a memória seja tão fugaz, tão frágil e pouco confiável.
É um filme com um ritmo extremamente lento e isso certamente assustou quem caiu de paraquedas nesse terreno desconhecido do terror experimental/analógico/claustrofóbico. Ele pode parecer parado por causa dos planos estáticos, mas há sempre alguma coisa acontecendo por trás do que a câmera está nos mostrando. Tudo no filme é assim. Tudo é muito mais implícito do que explícito. É um filme que exige muito de quem o assiste. Não é uma comunicação unilateral: na verdade, o telespectador está o tempo inteiro participando ativamente da construção narrativa e conferindo significados aos elementos que são dispostos na tela. Porém, isso pode ser bem frustrante para quem não estiver no mesmo clima do filme, as coisas podem desandar e resultar em puro tédio. Para aproveitar tudo de bom que o filme tem a oferecer, é preciso ceder um pouco e aceitar o “duelo” nas condições impostas por Ball.
O filme segue em uma construção exponencial de claustrofobia, solidão, tensão e ansiedade que não dá trégua. A cada cena que se passa, essas sensações vão crescendo, crescendo e crescendo. Uma música de pós-rock cresce em tensão a partir de uma lógica parecida, mas libera essa energia em seu clímax. Esse filme não. Ele não cede. Ao ponto de que as cenas mais explícitas não geram nenhum alívio, senão servem apenas como mais elementos que compõem essa pintura audiovisual. Ao final do filme, uma voz que sai da escuridão, aparentemente falando com Kevin, é ambígua o suficiente para parecer que está quebrando a quarta parede e falando diretamente com o telespectador. “Qual o seu nome?” ela pergunta. E estamos tão imersos no filme que ficamos com medo de responder. A voz não tem paciência e repete a pergunta. E, bom, nesse momento eu já tinha perdido completamente qualquer resquício de dignidade que ainda me restava. O filme busca a todo o momento tocar e deturpar a nostalgia do telespectador, apresentando cenas nas quais as crianças estão assistindo desenho em uma tevê que está no chão da casa, o tapete cheio de peças de lego no chão, o medo da escuridão, tudo isso faz parte de um imaginário de infância que dialoga com muitas pessoas, buscando criar um vínculo. O diálogo final nos dá a sensação de que o meio foi completamente diluído e a voz agora consegue sair da tela diretamente para o nosso quarto. Você fica petrificado, com uma sensação de desconforto extremo, a mesma sensação que Kevin e Kaylee sentem quando percebem que estão sozinhos em casa com o escuro e as suas imaginações e isso torna a cena um dos melhores encerramentos de qualquer filme de terror.
Skinamarink é um filme amaldiçoado. Talvez tenha sido achado em alguma fita VHS avulsa no sótão de alguma casa antiga nos subúrbios de Alberta. A sensação de assistí-lo é como assistir à própria fita de O Chamado e sentir que a qualquer momento alguma coisa vai acontecer em seu quarto. Ele se preocupa muito com isso: provocar sensações no público. É um filme muito atmosférico e isso requer paciência. É um pesadelo parido nos cantos mais repugnantes do inconsciente e que nos lembra do quão vasta e interminável a escuridão parecia quando éramos crianças. É um filme que exige muito da sua audiência, que certamente vai dividir muitas opiniões, mas ele não tem preocupação nenhuma de agradar todo mundo. É um questionamento sobre o próprio modo de se fazer filmes, subvertendo noções pré-estabelecidas e aproveitando o que o cinema tem de melhor a oferecer como arte: o poder inquietante e opressivo das imagens e dos sons. Skinamarink te dá a impressão de nunca deveria ser visto e é por isso que você precisa correr para assistir e formular as suas próprias hipóteses sobre o que, afinal, é Skinamarink.
Trailer:
Nota:
Veja também:
Crítica | Poltergeist 1, 2 e 3