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Crítica: The House

Diversas nuances da psique humana são exploradas em The House, novo longa da Netflix. Uma das produções mais estranhas e surpreendentes de 2022. 

Era uma casa muito engraçada… Lançado pela Netflix em janeiro de 2022, The House é uma coletânea de três contos realizados em stop-motion recheado de drama, humor ácido e com uma pitada de bizarrices. Em alguns lugares, a trama foi dividida como uma minissérie em três capítulos, mas aqui no Brasil ele é um longa-metragem divido em três atos que, embora se situem em diferentes realidades, com diferentes personagens, enredos e motivações, são interligados por suas semelhanças, e têm a casa como eixo central, o fio condutor de toda a narrativa.

A primeira história, “And heard within, a lie is spun”, se passa na Era Vitoriana, na Inglaterra, em meados do século 19, e conta a trajetória de uma família humilde que, após repreensão dos parentes devido a sua situação financeira, aceitam uma oferta de um empreiteiro misterioso como uma chance de subir na vida: eles se mudariam para a mansão projetada por um grande arquiteto, com a condição de que eles teriam de ceder o atual terreno e deixar para trás importantes traços de sua formação familiar.

Uma reflexão que é muito importante nesse primeiro momento é a diferenciação entre as concepções de lar e casa. Ao abandonar o seu cotidiano simplório e serem recebidos com refeições extravagantes e objetos de grande valor, os pais são contemplados pela magnitude da construção, porém as suas filhas, especialmente a mais velha, notam algo de errado, sentem que deixaram seu coração para trás e não se sentem confortáveis perante todo o luxo da nova construção. Nesse sentido, são usadas muitas metáforas para retratar esse deslocamento. Os corredores da nova casa são largos e vazios e suas paredes são pintadas de azul, representando a tristeza, em contraste com os tons alaranjados da casa antiga representando o conforto e a união familiar. O momento derradeiro de ruptura com o antigo lar e seus costumes é a sua demolição, destruição física e moral, que abre caminho para uma obsessão cada vez maior pela nova casa .

Pouco a pouco, os laços familiares vão se enfraquecendo, com os pais cada vez mais hipnotizados e obcecados pelos símbolos de poder dentro da casa e deixando de lado valores que sempre defenderam em prol de uma ambição desmedida. Esse distanciamento se torna bem evidente quando, devido às constantes e estranhas mudanças na estrutura da casa, as escadas são retiradas. Além disso, destaca-se uma cena na qual o pai tenta acender a lareira, que seria um símbolo de aconchego familiar, mas fracassa miseravelmente.

A partir disso, há uma transformação progressiva dos pais em mobília, como forma de criticar a cegueira deles perante às impessoalidades baratas da vida material. O pai finalmente consegue acender a lareira, mas para isso têm de queimar os seus móveis antigos e o seu passado junto. Com isso, provoca um incêndio, e a chama que era para ser aconchegante e acolhedora, agora é motivo de destruição. As crianças conseguem escapar para reconstruir sua vida em outro lugar, porém os pais, agora uma cortina e um sofá, queimam junto com a casa.

Ato I – Reprodução: The House

A trama de  “Then lost is truth that can’t be won”, segunda história do longa, envolve um jovem rato arquiteto e designer de interiores que tenta reformar a casa para vendê-la. Aqui, é explícita a dualidade entre sanidade e insanidade, e a constante necessidade de reparar o local como uma metáfora para a sua tentativa de se mostrar são e digno de ser integrado à sociedade. Durante a tentativa de reforma, há uma constante infestação de insetos que, conforme o protagonista tenta se livrar deles, mais eles aparecem e cada vez maiores. Tendo em vista o seu perfil solitário e recluso, pode-se entender os insetos como seus transtornos, traumas, passados e pensamentos que o cercam e infestam sua mente e o estigmatizam, tornando-o rejeitado por parte da sociedade.

Nesse sentido, a tentativa de venda da casa pode ser vista como uma espécie de reintegração social por intermédio do mascaramento de seus transtornos e a tentativa de vender a imagem de que está tudo bem, quando na verdade os insetos continuam surgindo cada vez mais e cada vez maiores. A sua tentativa é fracassada e os insetos, agora fantasiados como visitantes, se instalam nas profundezas de sua mente e de lá não saem mais, usufruindo de todos os seus benefícios. O protagonista inicialmente fica incomodado com a situação, mas, conforme ele fica mais e mais nervoso, há uma piora severa de seu estado psicológico e os insetos tomam conta de sua casa. O protagonista gradativamente perde a sua identidade, sucumbe aos seus transtornos num retorno à involução, à barbárie e ao parasitismo. Ao final da história, o protagonista se reduz a um mero fantoche de seus transtornos mentais, causados pela estigmatização e rejeição de uma sociedade que tem aversão ao diferente. 

Ato II – Reprodução: The House

Por fim, temos o capítulo “Listen again and seek the sun”. Situado em uma realidade pós-apocalíptica, na qual o mundo inteiro está inundando, com exceção de alguns terrenos mais elevados, conta a frustrante história de Rosa, uma gata que deseja obsessivamente terminar de reformar a casa, mesmo estando presa lá com seus inquilinos por conta da inundação. A obsessão de Rosa reflete na maneira como ela lida com seus inquilinos, deixando de aproveitar a presença deles de forma prazerosa e focando muito mais na cobrança do aluguel. Mas, afinal de contas, eles estão presos naquela casa, então como poderiam trabalhar e ganhar dinheiro? E, indo além, como Rosa poderia obter materiais de construção em meio a esse cenário de isolação? 

O que se percebe é que a gata está em estado de negação perante a essa dura realidade e utiliza a reforma da casa como um mecanismo de defesa para lidar com todas as suas angústias e preocupações. Ela representa o arquétipo da pessoa sistemática e neurótica, enquanto, na contramão, os seus inquilinos são espelhos de leveza e tranquilidade. Rosa planeja minuciosamente reformas que de nada adiantarão para tirá-los daquela circunstância, ao mesmo tempo que seus inquilinos pensam em formas criativas de se salvarem da inundação, que invade a casa a cada dia.

Quando finalmente conseguem partir, Rosa fica sozinha e vê que as suas preocupações visavam a construção de um lar para si mesma, mas percebe que, na verdade, o que tornava aquela casa um lar era a presença de seus inquilinos. Nesse sentido, resgata um pouco da reflexão do primeiro capítulo ao estabelecer essa diferenciação entre casa e lar. A epifania de Rosa é traduzida no momento em que ela puxa a alavanca e a casa se torna uma espécie de navio. A partir disso, Rosa alcança um estado de paz absoluto e, navegando no desconhecido ao lado de seus amigos, aprecia pela primeira vez a plenitude de sua existência e resgata o prazer pela vida. Esse final traz uma mensagem de esperança e nos diz que precisamos de leveza, tranquilidade e espiritualidade para termos a capacidade de lidar com as eventuais frustrações e tragédias da vida.

Ato III – Reprodução: The House

The House é uma coletânea de contos que utiliza de uma construção dramática e de uma atmosfera teatral para estabelecer reflexões acerca das pretensões e desejos pessoais a partir de pulsões psicológicas e intimistas. Estabelece diálogos com os clássicos do suspense e do terror e busca, através de tensionamentos, evocar reflexões acerca das dualidades entre lar e casa, sanidade e insanidade, e neurose e liberdade. A animação é construída com muita originalidade e fluidez e, apesar do excesso de simbolismos, cumpre com maestria a sua pretensão de apresentar a casa como protagonista das tramas, capaz de levar o telespectador a lugares inimagináveis.

Confira o trailer:

Nota:

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