Uma série aconchegante, que até em suas cenas mais simples é capaz de gerar sentimentos gigantescos
A primeira temporada de Heartstopper (2022-presente) chegou aclamada pelo público e crítica com uma premissa muito simples: tratar sobre amizade, amor e descobertas de adolescentes queer, de forma leve e bonita. Baseada nos quadrinhos de Alice Oseman, a obra original da Netflix aqueceu os corações de jovens e adultos ao contar a história de Nick Nelson (Kit Connor) e Charlie Spring (Joe Locke), dois garotos que se apaixonam durante o ensino médio. Essa é uma série fora da curva para pessoas LGBTQIA+, pois foca em criar narrativas que transmitem conforto e não focam em tragédias ao retratar a comunidade, como acontece regularmente em outras produções. Em sua segunda temporada, o seriado continua desenvolvendo de forma magnífica o relacionamento dos dois (e dos personagens secundários, igualmente cativantes), e mesmo os temas mais sensíveis são tratados com muita responsabilidade pela direção da série. É uma série apaixonante, sobre jovens que se permitem sonhar, viver e criar realidades em que o amor e a amizade são peças chave em suas trajetórias.
A trilha sonora da série funciona muito bem, e ajuda a guiar todo o clima da produção. Desde a sua primeira temporada, as músicas são muito bem colocadas na trama e por artistas incríveis como Girl in Red, Wolf Alice e Conan Gray. Grande parte dos fãs da série esperavam que a cantora e compositora Taylor Swift tivesse músicas de sua autoria presentes no seriado, já que existem MUITAS que se encaixariam perfeitamente em qualquer cena clichê e fofa entre os personagens. O que ninguém esperava, é que a primeira e única música da artista a tocar na segunda temporada fosse em uma cena tão bonita, emocionante e significativa. A partir daqui, o texto contém spoilers da segunda temporada, então se for parar por aqui para não ter sua experiência comprometida, deixo um conselho não tão singelo assim: IMEDIATAMENTE VÁ ASSISTIR!!! Você também merece ter uma overdose de fofura com personagens tão fascinantes e dinâmicas tão maravilhosas quanto as existentes em Heartstopper!
Um breve contexto geral
Como dito anteriormente, a série lida com temas complicados de forma bastante sensível e responsável, e não é porque a série permite que uma realidade mais segura seja apresentada, que ignora os problemas que a comunidade LGBTQIA+ enfrenta. Nessa temporada, vemos o desenvolvimento de um dos melhores casais da série: Darcy Olsson (Kizzy Edgell) e Tara Jones (Corinna Brown), duas garotas lésbicas que também estão no ensino médio. Um momento extremamente fofo que acontece na segunda temporada, é quando Tara olha nos olhos de Darcy, e diz, pela primeira vez, que a ama. Sério, eu surtei muito! Porém, como nem tudo são flores, Darcy não diz que a ama de volta, e a falta de comunicação se apresenta uma grande questão no relacionamento das duas. Ao longo da série, vemos Darcy se esquivar de todas as tentativas de conversas mais sérias que partem de Tara, e vemos o quanto isso a afeta. Até que, no fim da temporada, descobrimos que Darcy tem uma mãe extremamente tóxica, e que não respeita a filha de nenhuma forma… Isso é tão forte, que o único lugar em que Darcy não é assumidamente lésbica, é dentro do próprio lar. Em certo momento, Darcy vai embora de casa, sem nenhuma tentativa de impedimento da mãe, e não comparece ao baile escolar, deixando Tara preocupada e ressentida pela falta de sua namorada em um momento tão importante e planejado pelas duas. Nesse momento, já não havia muitas lágrimas disponíveis para mim: já tinha derramado a maioria delas vendo o que ambas as personagens estavam passando. E, mesmo assim, eu ainda não imaginava o que estaria por vir.
A música, sua conexão com a série e a cena em que ela é apresentada
A canção “Seven”, composta por Taylor Swift e Aaron Dessner, é a sétima faixa do álbum Folklore, lançado em 2020. É uma música que fala sobre o sentimento que acontece ainda na infância, de perceber que a inocência dessa fase está ficando para trás. É uma das minhas músicas favoritas, e que traz de forma pura e dolorosa a percepção de que estamos crescendo e, com isso, sobre como somos obrigados a deixar inúmeras facetas e elementos tão importantes para trás. A canção é desenvolvida pela perspectiva de uma criança, que, em certo momento, canta diretamente para outra criança sobre seus temores de que esta não viva em um lar seguro. É uma música que possui uma linda composição, que nos transporta para momentos puros de imaginação livre, que só existem quando ainda podemos chorar alto e de forma desesperada para lidar até mesmo com as mais simples adversidades. É a celebração desse momento tão delicado sobre se perceber enquanto um ser humano, mas que também leva em conta que nem todas essas experiências de crescimento são seguras para todas as pessoas. E é com esse tom agridoce, que a canção se destaca em uma das cenas mais emocionantes já desenvolvidas em Heartstopper. Matt Biffa, um dos supervisores musicais da série, revelou no Twitter que Taylor assistiu a cena em que Seven tocaria no seriado e que a achou linda, o que fez com que os envolvidos na produção estivessem liberados para utilizar a canção.
Com uma tradução da ponte da música, vamos destrinchar um pouco porque a faixa combina de forma avassaladora com a história das nossas garotas, criando um momento único no série:
E venho querendo te dizer
Acho que sua casa é assombrada
Seu pai está sempre bravo
E esse deve ser o motivo
Quando Tara sai do baile e vai até a casa de Darcy, já que está preocupada porque a namorada nem mesmo responde suas mensagens, se depara pela primeira vez com a mãe de Darcy, que nem mesmo se preocupa em saber onde a filha passou a noite anterior, quando foi embora de casa. Mais tarde, quando Darcy lhe conta sobre como se sente em sua casa, Tara entende finalmente porque ela não consegue comunicar bem os seus sentimentos: a figura do pai que Taylor Swift cita em Seven, pode ser vista na figura de sua mãe. A casa assombrada entra aqui como uma metáfora para o fato de que a casa em que Darcy vive não é um lugar seguro para ela.
E eu acho que você deveria viver comigo
E então poderíamos ser piratas
Então você não terá que chorar
Ou se esconder no armário
Essa parte da música sempre me emociona um pouquinho. O problema da casa ̈mal assombrada” poderia ser resolvido se a pessoa que vive nessa casa fosse morar com o eu-lírico da canção e essa é uma percepção sensível, pura e ingênua de uma forma avassaladora. No segundo episódio da segunda temporada, Darcy brinca que o tema do baile escolar deveria ser sobre piratas, o que pode ser uma referência a essa passagem da música, que também demonstra certo descolamento da realidade, com a alusão de que elas poderiam ser o que quisessem. Já o verso sobre “se esconder no armário” pode ser tanto para fugir dos supostos fantasmas da casa mal-assombrada, mas também porque Darcy não é assumidamente lésbica para sua família de sangue. Então, se as duas ficassem juntas como é sugerido na canção, Darcy não precisaria mais se esconder. Amo tanto essas duas que quero chorar só de lembrar dessas relações entre a música e elas!
E como em uma música folclórica
O nosso amor será passado adiante
A música se inicia quando Darcy finalmente se sente confortável para dizer que também ama sua namorada (e diz isso várias vezes, com mais confiança em si mesma a cada vez que repete). Ela tinha receio de colocar em palavras os seus sentimentos, achava que Tara não a conhecia por completo, já que o que vivencia em casa era uma parte que ela mantinha escondida. Porém, não é assim que Tara enxerga a situação, e diz que continua amando Darcy da mesma forma. As canções folclóricas são histórias que são passadas através das gerações, assim como a história das duas, que ficará registrada nas HQs e no seriado, como um lembrete de que tanto elas, quanto os consumidores das obras também merecem viver amores dignos de serem lembrados. É emocionante ver que Darcy conseguiu finalmente compartilhar algo mais profundo com Tara, e ver as duas dançando pelo quarto ao som de Seven, felizes pela companhia uma da outra, é inesquecível.
Outra coisa legal, é que esse sentimento de cumplicidade se estende ao seu grupo de amigos. A música se derrama pela cena em que todos eles se divertem juntos, mostrando que não apenas entre as duas existe um amor saudável, mas também as relações de amizade que todos eles possuem ali: Nick, Charlie, Elle, Tao, Isaac, Tara e Darcy são perfeitos juntos, e é reconfortante ver que Darcy está a salvo ali. Heartstopper é uma série especial por criar um espaço seguro, em que a amizade e o amor são celebrados e vistos como essenciais, trazendo um quentinho no coração que poucas produções proporcionam.
É importante lembrar que a música não é tocada inteira durante as cenas, mas ainda assim a união da composição na íntegra ligada a história dessas personagens tão incríveis ainda faz muito sentido e se complementam lindamente. Um easter-egg legal da série também, é quando vemos pela primeira vez o quarto de Tara Jones, que tem um pôster ENORME do álbum Folklore em sua parede. Tudo é tão bem pensadinho, sabe? Lindo demais de se ver.
Ok, mas por que essa é uma cena tão especial?
Admito que esse texto é escrito de forma um tanto parcial, já que sou fã e acompanho a HQ Heartstopper, o seriado e também a Taylor Swift há anos, então a cena em que a música é apresentada me impactou muito pelo conjunto de todos esses elementos. Pelas redes sociais, ao conversar com outros fãs da série, foi notável que grande parte dos público se sentiu da mesma forma. Eu me emocionei muito assistindo a série inteira, desejando que tivesse algo semelhante para assistir durante a minha adolescência. A cena trabalhada aqui hoje é só uma dentre tantas outras em Heartstopper que permanecerão marcadas em mim por muitos anos. Quando pensamos em grandes cenas que impactaram o cinema e a televisão, geralmente lembramos de momentos cruciais para a narrativa, trazendo pontos de ruptura na trama, como a revelação de Darth Vader em Star Wars: Episódio V – O Império Contra-ataca (1980), ou o Casamento Vermelho na terceira temporada de Game Of Thrones (2011-2019). Porém, existem cenas como essa e que já nascem gigantes: apenas a sinceridade de um momento bonito, que nos leva às lágrimas. Ou me levou às lágrimas, para ser mais honesto. Pensar que existem tantos jovens LGBTQIA+ que vivem em casas assombradas por pessoas que deveriam estar ali como principal fonte de afeto, é desesperador. Pessoas como Darcy Olsson, que tem personalidades incríveis e merecem ser amadas com toda a atenção do mundo. Nós não somos a nossa família, e não viveremos para sempre nesses lares. Pessoas quebradas não devem ter tanto poder para mudar a percepção de quem somos, ou do que devemos fazer em nossas vidas. Elas não podem ter o poder de nos quebrar também.
Sabemos que em um mundo infestado de ódio, não conseguiremos revolucionar nada apenas com o poder do amor, mas Heartstopper nos mostra que podemos nos apoiar nas pessoas que amamos para caminharmos juntos. Na família que construímos por escolha. Nossos laços de amizade, afeto, e as histórias que amamos, também devem ser levadas adiante assim como as canções folclóricas, e espero, de coração, que esses amores também sejam passados adiante.
Trailer da primeira temporada:
Essa matéria foi escrita enquanto eu escutava:
Seven – Taylor Swift
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