Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo e o simbolismo por trás dos momentos mais hilários do longa.
O Oscar 2023 passou e, mesmo com alguns derrapes, a cerimônia parece ter achado novamente sua essência na temporada de premiações, período que poucos genuinamente se importam, mas muitos se interessam; afinal, é quase impossível pensar cultura pop hoje em dia sem considerar as obras audiovisuais que a discutem e a compõe.
Assistir à cerimônia foi um ar quente de nostalgia. E, especificamente no momento mais inusitado, o período em que a Academia se promove com uma propaganda curta mostrando seus museus e suas instâncias, algo forte clicou em mim. De repente, recordei-me da minha paixão pelo audiovisual, a qual parecia, havia alguns meses, ter se tornado apenas minha força de vontade – ou meu medo de mudar – me convencendo de que eu ainda me enxergava ali. E, enquanto via meu filme favorito da premiação ganhando a maioria das grandes categorias, lembrei-me também de como um set de cenas dele me impactaram de maneira inesperada.
Agora, para elaborar um pouco mais nesse tópico e, com sorte, poder gerar algum tipo de identificação, peço licença para deixar essa experiência ainda mais pessoal.
Desde o segundo semestre de 2022, passei a perder a paixão e o hábito por muito daquilo que, ironicamente, me incentivou a entrar e persistir na graduação de jornalismo. Cinema e todos os seus lançamentos aos poucos se tornaram sufocantes. Escrever por vontade própria havia se transformado em uma tarefa impossível. Fotografar, design gráfico, até mesmo estudar coisas novas por genuíno interesse. Tudo parecia escapar do meu alcance, da esfera do querer, e, em pleno começo do ano, enxergava apenas a casca da Bia que um dia eu já fui.
Com uma rotina cada vez mais sobrecarregada e mecanizada, perdi os momentos de respiro em que eu podia realmente parar para refletir minhas novas experiências, as novas relações as quais eu desenvolvia com meus hobbies, gostos e comigo mesmo. Todos hábitos da pessoa contemplativa que sou – forma bonita de dizer que “penso demais” – e que me fizeram falta. Isso porque comecei a conviver com mais pessoas com interesses, práticas e “talentos” muito parecidos com os meus e, sem o tempo de me autovalidar, nada parecia valer a pena ser externalizado; tentativas pareciam inúteis quando eu tinha uma certeza em mim que nenhum projeto seria tão bom em comparação com algum colega ou, muitas vezes, com minha versão idealizada.
Ainda, em algum momento da minha vida – provavelmente durante a pandemia -, meu determinismo por me aplicar até de fato me tornar boa, ou pelo menos confiante, no que eu faço simplesmente evaporou. Soube que algo estava errado quando até para fazer matérias para o Cinecom, onde eu tenho uma liberdade incomparável, esse sentimento me impedia e se tornava um ciclo vicioso difícil de quebrar: quanto mais tempo eu passava sem me permitir tentar, errar, mudar e quem sabe melhorar, mais parecia que o tempo parada me deixava ‘enferrujada’ para poder começar de novo.
E é aqui , depois desse longo desvio, que retorno à nossa conversa cinematográfica. Alguns dos momentos mais cômicos do grande ganhador do Oscar desse ano, o meu queridinho Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo, eram quando [SPOILER], para poder adquirir as habilidades de suas outras versões do multiverso, a protagonista Evelyn, e todos os outros “viajantes multiversais”, tinham que fazer a coisa mais inesperada e absurda inimaginável naquele instante.
Essas coisas logicamente impensáveis iam desde dizer “eu te amo” para a auditora arisca da Receita Federal, que do nada passa a perseguir Evelyn com habilidades ninjas, a se jogar de bunda em….. bem…. objetos pontudos.
De início, no entanto, o que mais se destacou no filme para mim era como ele retrata a relação conturbada de mãe e filha, toda a dor acumulada das falhas de comunicação e momentos de falta de empatia entre duas gerações diferentes de migrantes. A abordagem do trauma geracional, inclusive, é um dos maiores trunfos do filme, e foi frequentemente destacado pela crítica profissional.
Para a matéria da jornalista do The New York Times, Laura Zornosa, Peggy Loo, psicóloga e diretora do Coletivo de Terapia de Manhattan , afirmou acreditar que o longa pode servir como “um exercício de imaginação para os que passaram por traumas.”
Trauma pode encurtar a imaginação, se suas principais referências para as possibilidades da vida emergiram de experiências traumáticas. Para nos curar, precisamos ser capazes de enxergar para além do que sabemos e ao que fomos expostos.
Assim, para a profissional, a força do filme está em seu espectro da ficção científica, que força o espectador a suspender a realidade para acompanhar o enredo. Ela afirma ser o “contraponto perfeito e uma ótima forma de expandir a imaginação.”
Contudo, absorvendo com o tempo o filme e consumindo diversas vídeo-redações, e em especial a do criador Isac Ness sobre a obra, no período sucessor ao primeiro contato eu me toquei do quão poderoso é também a mensagem dos momentos humorísticos.
Não me entenda mal. Humor de qualidade muitas vezes vem de um processo complexo de entender ironias e ações irracionais do comportamento humano. Requer mais inteligência do que às vezes se imagina e não me surpreende que um longa tão cheio de nuances traria uma comédia também cheia de camadas. Mas, num momento em que tudo estava monótono na minha vida, essa ideia de que uma ação totalmente fora da norma pode criar uma nova realidade e quebrar o tal ciclo vicioso me acertou em cheio. Algo em mim clicou.
Essa é a realização a qual, aos poucos, a protagonista também chega ao decorrer da sua jornada do herói mais do que especial, já que nesse caso o grande vilão ou obstáculo são as relações cultivadas por ela. Na escala macro do filme, esse entendimento literalmente salva o multiverso. Mas de uma maneira bem mais modesta e intimista, onde está o verdadeiro ouro desse e de todo bom sci-fi, ela conseguiu parar de reproduzir uma vida sem sentido pela dificuldade de quebrar velhos paradigmas.
De repente, eu de fato “internalizei” aqueles papos de coach de que “basta ter determinação”, “apenas faça”, “acredite no seu potencial”. Porém de uma maneira bem mais saudável, realista e compatível com quem eu sou. E dentre todas as formas pelas quais esse longa-metragem da produtora A24 me mudou, a mensagem de ousar mudar e aceitar o desconforto do processo pelo que ele pode trazer de inusitado, sem querer controlar e prever todos os próximos passos, me trouxe aqui. Finalmente consegui escrever por gosto de novo, e a ansiedade por saber se vai ser um texto bom, se as pessoas vão gostar, ou se eu mesma vou 15 minutos depois de escrever, já não tira mais do prazer da experiência.
Enquanto eu provavelmente poderia tentar resolver minha agenda louca , com demandas acumulando em cima da outra e habilidades para aprender e técnicas para aprimorar e planejamentos para traçar e horas de sono para regular e academia para me matricular… parei tudo. E simplesmente comecei a escrever. E minha rotina voltou a ter sentido.
Espero que minha experiência de alguma forma ressone, bem como encontre você na hora certa, leitor. Mas uma indicação mais simples? Corra para o canto da internet que contém esse filme – já está disponível para assinantes do Prime Video – e faça a si mesmo esse favor. Não se esqueça de prestar atenção especial nas cenas em que Evelyn se conecta a suas outras versões.
Esse texto foi escrito enquanto a autora escutava:
this is me trying – Taylor Swift
Paper Bag – Fiona Apple
Goodbye Yellow Brick Road – Elton John
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Referências:
https://villagepipol.com/on-everything-everywhere-all-at-once-generational-and-trauma/
https://www.nytimes.com/2022/04/15/movies/everything-everywhere-all-at-once-interviews.html
https://www.youtube.com/watch?v=RQvlx-uLu8w