Como um documentário me fez perceber que a minha dor é sentida em todo o mundo. E que minha casa não é a única sendo destruída.
Eu sempre gostei de documentários. Desde que comecei a me interessar por cinema, descobri que a única coisa mais poderosa que a ficção, é a realidade. Já assisti muitos durante a minha vida, de diversos assuntos, uns muito bons, outros muito ruins, mas nenhum deles me afetou tanto quanto Algo de Podre na Água.
O documentário conta três histórias, todas são de comunidades periféricas no Canadá, pretas e indígenas, que são afetadas pelo racismo ambiental. O filme mostra as dificuldades que essas pessoas enfrentam diariamente, suas histórias e o que elas fazem para tentar mudar essa realidade
Eu nasci em um lugar longe de quase tudo, Almenara – MG, no Vale Jequitinhonha, e até me mudar para a faculdade eu morei e cresci no mesmo ambiente. Almenara foi criada com a intenção de ser um farol para quem atravessava o rio jequitinhonha, que era usado para todo tipo de transporte. A minha família é toda da região, meus pais foram vizinhos anos antes de namorarem, minhas avós eram amigas, meu pai, tio e avô conhecidos localmente como jogadores de futebol. Nessa pequena comunidade eu cresci e vivi, tudo em frente à praia do Rio Jequitinhonha, incluindo a minha casa.
Nas férias eu brincava na praia, nos finais de semana eu brincava na praia, nos aniversário eu brincava na praia, nos feriados, e nos dias normais também.
Similarmente, Elliot Page, diretor do longa, cresceu em Nova Scotia, no Canadá, acreditando que aquele lugar era tão bom quanto o paraíso, mas, ao crescer, percebeu as dificuldades ambientais enfrentadas por comunidades próximas da sua.
A minha diferença na história é que eu sou o Elliot Page e a comunidade afetada. A destruição ambiental não estava a alguns quilômetros de mim ou acontecendo com conhecidos, ela estava na minha frente, embaixo dos meus pés.
Conhecido por muitos como vale da miséria, o Vale Jequitinhonha é reconhecido por seu artesanato e sua pobreza. Com falta de educação de qualidade, manipular uma população se torna mais fácil, foi através disso que o rio foi sendo explorado, secado e destruído. Com promessas de emprego, avanços tecnológicos e reconhecimento nacional, esse lugar conhecido por sua cultura e comunidade, viu seu símbolo ser destruído a cada segundo.
Durante o filme, uma coisa fica clara, instituições poderosas, abusaram da fragilidade já existente nessas comunidades, acabaram com seus lares, destruíram suas histórias com promessas vazias e depois as culparam por sua queda.
As regiões socialmente periféricas são as mais afetadas pela destruição ambiental e são elas que lidam com suas consequências. Podem ser na província de Nova Scotia, pode ser no Vale Jequitinhonha, pode ser em tribos indígenas no Amazonas, pode ser em quilombos na Bahia, pode ser pelo país e mundo todo. A verdade é, lugares estão morrendo, lares estão morrendo, pessoas estão morrendo e com isso, suas almas e culturas.
Mesmo assim, há esperança. Existem pessoas que olham ao seu redor e na destruição, encontram força para resistir. Louise, que faz o que pode para não esquecer as dezenas de vizinhos que morreram de câncer. Michele, que luta pelo nome e reputação de seu pai, que era líder nativo. “As Avós”, um grupo de mulheres indígenas canadenses que protestam pelo seu direito à água limpa. E eu, escrevendo esse texto.
A gente não devia ter que continuar lutando. Nós não devíamos ter que estar lá fora falando ‘que merda tá errada como vocês’… por que o governo está bem com isso? Depois de saber muito bem a devastação pela qual a gente passou? Nossa história? Nós nunca vamos ser libertos disso.
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