Você está visualizando atualmente O dia em que descobri que sou chata

O dia em que descobri que sou chata

Como uma personagem insuportável e talentosa me fez entender a minha significância.

Eu saio com lanternas

procurando a mim mesma

Eu nunca me senti única do jeito que pensava que as outras pessoas eram, não achava que eu tinha um traço de personalidade meu, um jeito meu, um gosto meu, uma particularidade minha. Quando comecei a consumir conteúdo cinematográfico, não foi para me sentir representada ou entendida, foi para me divertir, mas é claro que isso mudou em algum momento.

Acho que esse texto vai deixar claro que normalmente eu me subestimo.

Emily Dickinson foi uma poeta do século XIX, não foi famosa quando viva, ninguém pensou nela como extraordinária, provavelmente nem ela mesma. Durante sua vida, escreveu incansavelmente, por dias inteiros e noites em claro, mas 1800 de seus poemas só foram descobertos pela sua irmã depois da sua morte, coletados e então publicados. Ela é uma das poetas mais famosas e renomadas até o dia de hoje, mudou o mundo literário por completo, revolucionou o significado da poesia.

Dizem, “com o tempo se esquece”,

Mas isso não é verdade

Que a dor real endurece,

Como os músculos com a idade

O tempo é o teste da dor,

Mas não é seu remédio-

Prove-o e, se provado for,

É que não houve moléstia.

Eu não sou grande fã de poemas, mas sou de comédias dramáticas e da Hailee Steinfeld, por isso, quando anunciaram uma série curta e de comédia contando histórias ficcionais da vida de Emily Dickinson, eu tinha certeza que ia assistir.

Me apaixonei instantaneamente pela história, a personagem principal, Emily, era louca, interessante, diferente e talentosa, e eu me identificava com ela, apesar de não me achar louca, interessante, diferente ou talentosa. Porém, minha maior realização acabou sendo a percepção de que nós duas somos insuportavelmente chatas.

Reprodução: Dickinson

Emily é MUITO chata, não gosta de nada nem ninguém, é rude, faz piadas nas horas erradas, não é simpática, sempre pensa em si mesma, é orgulhosa, se acha superior, se acha inferior, reclama, não trabalha, não cozinha, não se casa, fica o dia todo dormindo e escrevendo. Ela ignora o mundo ao seu redor pra ficar presa em sua própria bolha, nos seus próprios pensamentos, nela mesma.

Quando eu percebi que eu era meio Emily Dickinson, me senti um pouco orgulhosa, afinal, ela deixou sua marca, inventou uma nova forma de fazer arte, será que aquela ignorância fazia dela especial? Será que o seu isolamento fazia dela uma artista melhor? E se sim, será que valeu a pena? Será que se ela tivesse a oportunidade, faria diferente?

Eu sei tudo sobre ela, pelo menos tudo que pode ser encontrado na internet (o que não é muita coisa) mas a série abriu os meus olhos para essa adoração ao artista torturado, a ideia de que o sofrimento, a dor e a depressão são a razão para os artistas fazerem trabalhos significantes e revolucionários. A personagem não é tão fiel à poeta verdadeira, não tem como ser, mas ela representa um pouco do que gostamos de pensar sobre as pessoas que fazem história, que elas são rebeldes, únicas, indiferentes e que são esses fatores que as tornam extraordinárias e seus defeitos, perdoáveis.

Morrer por ti era pouco.

Qualquer grego o fizera.

Viver é mais difícil-

É esta a minha oferta-

Morrer é nada, nem

Mais. Porém viver importa

Morte múltipla – sem

O alívio de estar morta.

Reprodução: Dickinson

A série usa elementos de comédia, gírias atuais e musicas de rap e pop para nos mostrar que apesar de ter nascido em 1830, a personagem tinha as mesmas dificuldades que temos agora, os mesmos sentimentos e que, apesar de tudo, abriu o caminho para todas as mulheres que nasceram artistas incompreendidas desde então.

Talvez Emily não tenha feito de propósito, ela certamente tinha um dom, um talento que não podia anunciar pro mundo por ser mulher. Talvez Emily Dickinson não escolheu ser chata, não escolheu se isolar, pensar nela e não ser simpática o tempo todo. Talvez ela estava tão presa na própria cabeça, tentando descobrir o que era capaz ou não de fazer, que esqueceu que tudo ao seu redor podia aliviar um pouco a dor de estar perdida.

É muito fácil se perder em seus pensamentos e ignorar os outros quando esse é um comportamento comum, também é fácil se sentir egoísta. A sensibilidade te permite simpatizar com a dor dos outros, mas também te permite sentir a sua mais intensamente.

Reprodução: Dickinson

Eu não sou artista e nem torturada, não nasci no século XIX, não sou rica, não escrevo poemas que escondo no armário, mas eu sou um pouco dela. Sou um pouco dela na série, engraçada e cercada de amigos e sou um pouco dela na vida real, solitária e com medo.

Se nem a própria sabia que ela se tornaria o que é, talvez eu também seja um pouco Emily Dickinson: a parte chata e extraordinária.

Não sou ninguém! Quem é você?

Você não é–ninguém–também?

Então tem um par de nós!

Não conte! eles vão nos banir–você sabe!

Leia também:

As Pequenas Coisas da Vida

Fantasmas de tempos passados

A dor canibalística da experiência feminina

Comentários

Autor