Quando a existência feminina já é um horror por si só, como o cinema trabalha esses medos e terrores?
Histórias de terror sempre existiram para nos conectar com nossos medos mais profundos, sejam fantasmas, palhaços, assassinos sanguinários ou até mesmo alienígenas. Há um certo conforto em estar sentado no sofá enquanto assiste horrores inimagináveis, provocando medo e tensão e liberando hormônios, mas tudo isso na segurança da sua casa.
Mas e quando o medo não vem de algo tão fictício assim? E quando o horror vem de uma realidade muito perto de nós: ser mulher. A existência feminina já é um grande filme de terror, afinal, não precisa de muito para afetar profundamente uma mulher. Seja o medo da violência sexual, o ódio do próprio corpo, e, no caso de mulheres cis, a puberdade e a gravidez já são histórias aterrorizantes.
Ser mulher nesse mundo em que vivemos é um terror por si só, e o cinema serve também para representar certas realidades socioculturais. Que tal analisarmos um pouquinho sobre como experiências femininas são abordadas em filmes de terror?
A puberdade feminina já foi bastante explorada no cinema. Em Carrie, a Estranha, Carrie ganha seus poderes telecinéticos logo após a primeira menstruação. Enquanto chora desesperada com o sangue de sua menarca em suas mãos, ela é hostilizada por seus colegas de classe. Tudo isso culmina na clássica cena final de Carrie suja em sangue de porco, enquanto destrói o baile de formatura.
Outro filme que traz esse tema é Valerie e a Semana das Maravilhas, filme surrealista dos anos 70, que conta a história de uma menina que mora com sua avó num vilarejo bizarro dominado por um líder religioso chamado Doninha. Após sua primeira menstruação, a existência de Valerie naquele lugar se torna um pesadelo, quando ela começa a perceber cada vez mais as violências do lugar que mora.
Em ambos os filmes, a primeira menstruação vem como a perda de inocência e pureza dessas meninas. No caso de Valerie, ela agora é uma mulher e pode ser tratada como tal — e isso significa que ela está pronta para viver os horrores de sua vila e ser desejada por homens muito mais velhos do que ela. Em Carrie, a menstruação é grotesca, nojenta, e é o que transforma simples meninas em monstros.
E é assim que vemos a menstruação, não é? O sangue que escorre pelas pernas é considerado sujo, e quando essas meninas se tornam “mocinhas”, elas ficam ainda mais vulneráveis à violência masculina. Afinal, elas agora são mulheres, e mulheres são propriedades.
O horror está presente desde o início da adolescência feminina, e ele perdura por todas as fases de sua vida.
Muitos filmes de terror ao longo da história trouxeram a gravidez e a maternidade de tema, como o clássico O Bebê de Rosemary. Mas, após ler essa matéria do The Guardian, eu achei muito curioso que essa temática tenha aparecido tanto no cinema em 2024.
Filmes como Imaculada, Alien: Romulus, A Primeira Profecia e Apartamento 7A, todos lançados esse ano e todos abordando a gravidez como seu próprio horror corporal, muitas vezes fruto de relações não consentidas. Aliás, vocês não acham que carregar um ser dentro de você enquanto seu corpo se modifica não é um conceito bem filme de terror?
Esses filmes retratam também como as mulheres perdem o controle do próprio corpo enquanto estão grávidas. Em Imaculada, A Primeira Profecia e Apartamento 7A, observamos como instituições religiosas controlam o corpo de mulheres, tornando-as suas propriedades. Essas mulheres são tratadas como meras incubadoras e reduzidas à suas funções reprodutivas. Elas não são mais pessoas (se é que já foram um dia), elas agora são grávidas. O feto se torna prioridade, e a vida e o bem estar dessas mulheres se tornam assuntos secundários.
É engraçado perceber esse tema tão em alta no cinema de horror quando a realidade já é um horror por si só. Nos Estados Unidos, onde esses filmes foram produzidos, os abortos atingiram os níveis mais altos em 2024, apesar da proibição em diversos estados desde junho de 2022. E no Brasil não é diferente: um dos assuntos mais discutidos do ano foi o Projeto de Lei nº 1.904/2024, conhecido como “PL do estupro”, que equipara o aborto após 22 semanas com homicídio.
Essa perda de controle do próprio corpo e da própria gestação faz com que os horrores da realidade apareçam nos horrores da ficção. Ninguém aqui está grávida do Anticristo, mas estar grávida do seu estuprador, por exemplo, pode ser tão ruim quanto.
Como fugir quando o terror está presente no seu próprio corpo?
Após a perda da inocência na puberdade, e a realização de seu objetivo de vida na gravidez, o que resta para nós mulheres na velhice?
Sabemos que as mulheres têm um prazo de validade na nossa sociedade. Por volta dos 40 anos, quando a gravidez começa a se tornar apenas uma memória distante, a mulher perde seu valor e se torna algo descartável. Sem o seu aparelho reprodutivo funcionando, essas mulheres se tornam inúteis.
E é claro que o etarismo é um problema muito além do gênero, pois homens idosos também sofrem com preconceitos, mas é muito diferente, homens ganham valor quando amadurecem, são considerados mais bonitos e mais galãs. Mulheres, não. Elas precisam fazer cirurgias plásticas e usar substâncias que a fazem parecer cada vez mais novas.
O mundo não é carinhoso com mulheres velhas. E isso é abordado no filme queridinho de 2024, A Substância, onde a ex-estrela de cinema Elizabeth Sparkle, agora uma simples apresentadora de um programa de ginástica na TV, sofre com a pressão de envelhecer. Quando é demitida no seu aniversário de 50 anos, Elizabeth usa uma substância que cria uma versão mais jovem e melhor de quem ela é.
A insegurança feminina é o maior terror abordado no filme, seja nas cenas em que Demi Moore se agride em frente ao espelho, seja na comida usada como elemento grotesco, seja no fato de que a velhice é tratada como um body horror por si só. Não é a primeira vez que mulheres velhas são representadas como figuras monstruosas, basta olhar os clássicos infantis.
Ao contrário de Elizabeth, Sue, sua versão mais jovem, é filmada de maneira sexualizada e exaltada por seu corpo perfeito. E sua vida simplesmente acaba quando ela percebe que essa perfeição é impossível. Nem mesmo mulheres “perfeitas” estão livres do olhar deturpado masculino.
A sociedade até não gosta de mulheres, mas ela realmente odeia mulheres velhas.
A representação do medo feminino é violenta. Afinal, vivemos numa sociedade dominada por homens truculentos, que tentam controlar e abusar dos nossos corpos. E o cinema de terror vem trazendo esses temores femininos cada vez mais em suas histórias. Aliás, esse é o gênero que mais traz visibilidade feminina, e também é um dos mais querido por mulheres (por volta de 60% da audiência é feminina).
Depois disso tudo, podemos concluir que sim, o horror é feminino.
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