Uma reflexão sobre a prática fictícia do ‘Expurgo’ e o porte de armas de fogo.
A franquia Uma Noite de Crime continua se movimentando no mundo do cinema. A sequência de filmes retrata um EUA futurista, por volta do ano de 2022 que, uma vez por ano, ocorre um tipo de ‘feriado nacional’ em que durante doze horas consecutivas todos os crimes são legalizados, inclusive homicídios. Além de lançar seu quarto filme em agosto de 2018 (A Primeira Noite de Crime), em que retrata como se iniciou essa prática no país, The Purge também invadiu as telinhas e se tornou uma série transmitida pelas emissoras americanas USA e SYFY. Tecnicamente falando, a franquia não apresenta ótimas avaliações pela crítica por conta de suas especificidades cinematográficas, porém, sua temática base transcende as telonas e nos permite fazer várias reflexões sobre a contemporaneidade.
Em seu quarto filme, que retrata a primeira noite de crimes feita nesse contexto futurista, a questão levantada em todos os demais filmes é confirmada abertamente. O governo americano sofria com altos índices de violência e uma profunda crise econômica, em que as arrecadações governamentais não eram suficientes para suprir toda sua população. A solução para isso foi a criação do ‘Expurgo’ em que todos os crimes são liberados por 12 horas uma vez por ano, sob a justificativa de que ao liberar sua raiva sem punições os cidadãos viveriam o resto do ano de forma harmônica. Porém, a verdadeira motivação para esse evento é a eliminação das camadas mais pobres da população que carecem de investimentos públicos, afinal, os ricos que participam do expurgo possuem recursos para comprar armas de alta categoria para liberarem sua raiva e, os que não participam, possuem recursos para se proteger, comprando sistemas de proteção, que no contexto do filme é um mercado promissor. Os pobres não possuem condições nem de portar armas, seja para expurgar ou para alto defesa, nem para comprar os sistemas de proteção, ficando assim a mercê da brutalidade do expurgo.
– Ta bom Cinecom, mas e daí? É só um filme!
Ok, vamos analisar a realidade então. Não é de hoje que o tema da liberação do porte de armas é pautado na sociedade, nem mundial, muito menos brasileira. O discurso é que, com uma policia deficiente que não protege totalmente a população, o cidadão tenha o direito de adquirir sua arma de fogo para se defender. Mas, a população pobre que ‘vende o almoço para pagar a janta’, que com muito custo consegue comprar sua cesta básica, definitivamente não possui recursos para comprar uma arma de fogo, nem ilegalmente e nem se houvesse a legalização, pois com legalização há também taxação. Ou seja, é uma proposta que mais uma vez coloca as classes da sociedade uma contra as outras mantendo uma em posição inferior à outra.
E não apenas isso, a trama aborda essa questão com características que se assemelham ao fascismo. É estabelecido um inimigo comum da nação, um segmento da sociedade que ameaça o crescimento do país, uma vez que muitos recursos governamentais são destinados aos pobres para educação, saúde, transporte e etc não tendo o suficiente para nutrir as demais necessidades do país. E uma vez que o Estado legitima esse discurso, uma grande parte da população, principalmente de classe alta, compra a ideia e participa da noite de crimes não mais para expurgar sua raiva apenas, mas para também cumprir seu papel para com a pátria. Por fim, a população pobre enfrenta a alta sociedade e o governo de uma única vez, sem recursos para lutar de igual pra igual, resultando num extermínio contínuo dessa população.
Portanto, ao se tratar de um tema tão importante e delicado quanto possibilitar a população portar armas de fogo, é necessário pensar se isso beneficiará a todos os segmentos da população, tanto no âmbito de analisar se essa é realmente a solução mais eficiente para combater a criminalidade, quanto o âmbito de certificar que todos terão a mesma oportunidade de se beneficiar dessa realidade.