As portas que esquecemos em nosso passado e a escolha que envolve o amor
Eu não saberia fazer exatamente uma crítica, afinal, eu não saberia por onde começar, é um filme muito amplo em vivências, é feito para ser sentido, feito para chorar ou entrar em choque com alguma área da sua vida, algum fantasma. Me resta apenas tentar mostrar minha visão sobre essa obra e a magnitude dos olhares.
Em Vidas Passadas vamos acompanhar um amor infantil que teve um “fim”. Nossa protagonista, Na Young, se muda de país e o seu romance com Hae acaba, pois agora ambos estão em outros mundos. Esse fim fica mais definitivo quando você percebe ela se transformando em Nora, seu novo nome, essa é a persona que ela vai construir e amadurecer, deixando no passado seu antigo nome e sua vida na Coreia, porém, o filme nos apresenta logo no começo conceito de in-yun, que resumidamente, assim como o nome do filme, fala sobre vidas passadas, de encontros que vão continuar acontecendo pelas vidas, de pessoas ligadas pela alma, e assim, sabemos que eles vão se reencontrar.
Anos vão se passar e os dois vão acabar se reencontrando por causa da Internet, esse fator novo que muda nossas vidas e as formas que nos relacionamos, como o filme mostra. Apesar da saudade, não é mais algo irreal, mas, assim como na infância dos dois, o contato precisou ser cortado e agora, pela responsabilidade de construir um futuro, o peso dos vinte e poucos anos, de tentar crescer e ser “alguém”.
Nos próximos anos Nora vai se casar com Arthur, um escritor assim como ela, e Hae novamente se torna uma memória distante, alguém que não ocupa um espaço real em sua vida, porém, ele decide visitá-la no Estados Unidos e vamos acompanhar tudo que está sendo dito e tudo que visivelmente é necessário manter distante.
Essa é a premissa básica do filme, mas gostaria de conversar sobre a idealização do amor, sobre como tudo precisa ser extremo, uma história que sai de um romance e as expectativas irreais que depositamos em uma única pessoa.
Na minha visão, Nora e Hae nunca foram verdadeiramente apaixonados um pelo outro, nunca existiu um amor romântico em si, existe entre ambos essa possibilidade nunca vivida, uma outra realidade que poderia ter acontecido, não existe a construção de uma relação, um companheirismo de vida, é apenas uma grande dúvida que todos carregamos em nossas vidas e em algum ponto da nossa história. Mas, para alguns, é necessário transformar essa dúvida em destino, em alguma coisa que faça algo que acabou/nunca aconteceu e perdeu o sentido em algo pré-determinado, e esse tema que entrelaça esses três personagens, essa dúvida sobre quem deveria ter ficado com Nora é algo que o telespectador pode acabar dividindo.
Nora e Hae apresentam para nós todas aquelas escolhas que um dia fizemos e as consequências que carregamos de caminhos que nunca vão poder ser vividos, pois escolhemos outro faz muitos tempo. Ainda demonstra a nossa necessidade de olhar para o passado, para outras pessoas, como caminhos melhores pelos simples fatos de que elas nunca aconteceram e se vendem como uma vida mais fácil que a atual, sobre buscar algum destino pelo fato de que não queremos o trabalho de construir ou evitar algo com nossas próprias mãos.
O silêncio entre os dois, os olhares, transmitem esses pensamentos, esses choques entre as versões que eles foram e aquelas duas versões que não são mais próximas, isso dói, esbarrar com pessoas que já foram importantes e agora se tornaram apenas uma grande marca, uma grande dúvida, é algo que todos lidamos em algum aspecto de nossas vidas. Nora transmite esse receio, esse medo de se afundar em algo que vai destruir ou ferir tudo que já foi construído, o receio de pensar em destino, esse conflito entre nossa razão e emoção, de se relacionar como uma pessoa adulta e não como um adolescente com hormônios explodindo.
Arthur é o personagem mais interessante, ele é o marido que não sabe falar coreano, mas tenta aprender, que não conhece toda essa cultura e ainda se esforça para conseguir partilhar essa vida de costumes de uma criança coreana que desapareceu com Nora. Ele também acompanha a finalização de um “romance” que ele não faz parte, o filme em nenhum momento tenta vilanizar ele, em nenhum ponto faz um ultimato ou joga ela contra a parede, você percebe em alguns diálogos, em olhares (muito é dito pelos olhos), essa preocupação, esse medo de perdê-la, mas ele se encontra sempre disposto, aguarda ela vê-lo, escuta as falas dela sobre Hae e vai conhecê-lo. Apesar do visível desconforto, ele não impede ela de viver essa experiência, de descobrir o que essa história significa para ela hoje em dia, de compreender como adulto que tudo mudou, relações se transformam e tudo que resta é a escolha, e mesmo nunca sendo dito, ele espera a escolha dela, qual de suas duas versões, a mulher que se sente muito mais americana ou a criança que faz ela se sentir muito mais coreana perto do Hae, ela irá escolher.
Arthur enxergar Nora por quem ela é, eles se casaram, construiram uma vida juntos, ele carrega o medo de faltar certo romantismo, um romantismo que talvez exista na história de Hae e Nora, mas é visível que construir uma vida com ela, ser companheiro, conhecê-la, é romance suficiente, pois já é algo extremamente difícil. Esse diálogo aberto, esse lugar seguro, esse amor tranquilo que raramente aparece nas telas, escolher e ser escolhido, todos os dias de sua vida, é raro, e aí entramos na idealização.
Hae olha para Nora com um olhar apaixonado, como alguém que sente falta, que pensou muito nas possibilidades, nas coisas que ele poderia ter dito, nas coisas que poderia ter feito para ter ela ao seu lado hoje em dia. Ele nunca fala, nunca pede, mas é óbvio que existe a esperança por um recomeço, por um caminho, mas nunca sinto (apenas na reta final) que ele está verdadeiramente enxergando ela, o olhar de dúvida que ela lança, o medo que habita em seu rosto, o receio de fazer alguma coisa errada, de estar sendo, de alguma forma ou nível, infiel a sua vida, ao seu marido e com quem ela é. Enquanto por boa parte do filme, eu percebia o Hae criando Nora, eu notava Nora movendo tudo dentro dela para o caminho que ela quer, para a vida que ela pretende escolher e para isso, é necessário uma finalização, um adeus emocional, arrancar uma raiz que insistimos em ignorar, Hae visivelmente acredita em destino, para mim, Nora visivelmente acredita na escolha envolvendo ele, mas no destino envolvendo Arthur, ela fala que é onde deveria estar, e não existe um certo, o destino pode nos levar até determinadas pessoas, mas talvez dependa de nós escolher a certa, aquela que queremos, aquela que buscamos.
Vivemos em uma indústria que vende essas grandes histórias de amor, amigos de infância que se reencontram, ex-namorados que acham um recomeço, são sempre essas histórias com grande atos, com uma grande romantização das relações humanas e é por isso que vejo tantas pessoas incomodadas com Nora e Arthur, porque eles não vendem isso, eles são algo real, são uma escolha, duas pessoas que se conheceram, sentiram algo uma pela outra e decidiram construir uma vida, partilhar quem são, com toda sua monotonia, manias, bons momentos, péssimos momentos, risadas e discussões. Eles são uma realidade muito palpável, mas também distante do imaginário, e muitas pessoas, em um cinema, não esperam isso de uma história de amor, o confronto com o normal, mesmo sendo belo, desaponta, e eles torcem pela história de amor que nunca existiu, pois parece mais audacioso ou emocionante, eles querem o destino que vai superar vidas inteiras, escolhas feitas, pensamentos racionais, por uma emoção fugaz e sem sentido, afinal, se você abandonar uma vida inteira, se jogar nos braços de alguém e beijá-lo, como fica o depois? Não existe construção, conversas, visões parecidas, escolhas de onda morar, todas essas questões básicas, mas tudo é justificado pelo “destino”.
Nossas vidas se tornam nossas pelas nossas próprias escolhas, obviamente existem fatores externos, onde nascemos, mudanças, classe social, oportunidades, mas ainda existe algo nosso, mesmo quando as escolhas que tivemos são limitadas, ainda podemos escolher. No encontro de ambos, o filme mostra essa ponte, sobre quem fomos, quem somos, tudo que fizemos nesse meio e que nos tornou em nós mesmos no presente, essa magnitude do peso de tudo que erámos. Nora compreende isso e se liberta das suas próprias amarras, das próprias dúvidas de tudo que ficou preso em uma nostálgica Coreia, de onde ela partiu, e dizer adeus para aquela menina que ela nunca mais foi.
Vidas passadas é uma daquelas raras obras, que no final do filme, ficamos presos dentro de nós mesmo, olhando lugares dentro da gente que já estão empoeirados, livros de memórias com pessoas que já não enxergamos mais, nomes que não fazem mais sentido, antigos sonhos que enferrujaram, todas essas pequenas ou grandes coisas que esquecemos no caminho, pois a vida é essa constante mudança. Porém, na maioria das vezes, se nos perguntarem onde tudo mudou, não vamos saber apontar, são tantas equações nesse cálculo que nunca encontraríamos o motivo exato, a data correta, o horário que nosso matéria se alterou. O final é um espetáculo que merece ser visto sem saber, que puxa questões que talvez nunca vamos entender.
Para mim, é sobre aprendermos a parar de romantizar a realidade, de buscar em nosso passado uma vida melhor que a nossa, pois o passado se foi e tudo que podemos vivenciar e alterar é o presente. Parar de tentar justificar tudo como se fosse dever do destino, de algo já traçado e sermos responsáveis com nós mesmos e com os nossos afetos, de fazer escolhas que realmente valem a pena, de escolher quem se ama, pois amar é construir, é partilhar tudo mesmo sabendo que o mundo não faz sentido, é escutar ou trocar palavras, fotos, abraços e beijos, mesmo sabendo que essa escolha. A escolha do amor real, das relações reais, de ser maduro na afeição, sempre terá um único fim possível… aquele para tudo aquilo que dura na vida, a morte. Por isso acho o filme tão bonito, é escolher alguém mesmo com todas as dúvidas, mesmo se o destino quer ou não, mesmo sabendo que nós podemos morrer ou a pessoa amada pode morrer em qualquer momento, e mesmo com essa possibilidade de dor existindo, continuar fazendo a escolha de amar, continuar fazendo a escolha de dividir uma vida inteira ao lado dela, continuar fazendo a escolha de sentir essa dor no final do caminho, porque apesar da morte, eu acredito que o amor continuará nos acompanhando onde quer que vamos. Pensei muito em destino por causa desse filme e na minha visão, vamos continuar amando as pessoas que escolhemos, essas pessoas que nos fazem bem, seja uma família que é construída ou seja o par romântico que escolhemos para nossas vidas, mesmo em planos diferentes, um na terra e o outro no mistério, o amor acompanha, o amor une e liga eternamente essas duas almas que se escolheram, até elas finalmente se reencontrarem.
É sobre a raridade de encontrar alguém disposto a compartilhar uma vida, silêncios, momentos bons e angustiantes, e que nunca nos force quando não sabemos exatamente o que fazer. É aceitarmos que se algumas coisas se tornaram fantasmas, memórias perdidas, era para ser dessa forma, que todas hipóteses, todo “e se?”, tudo isso que adoramos construir em nossas cabeças, esses enredos fantasiosos, não valem absolutamente de nada, são pura ilusão, precisamos fechar essas portas abertas de onde essas histórias se arrastam e nos perseguem. É sobre o milagre do presente e tudo de bom que existe em nossas vidas.
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