“Meu amor.
Olha só, hoje o Sol não apareceu!!!”
E foi só aí que eu percebi que, sim, o Sol tinha aparecido.
Nem mesmo parecia que a poucas horas o céu estava tomado por um tapete aveludado escurecido, que me fez pensar que talvez esse não seria um dia para muitas celebrações. Poucas horas atrás me perguntava se a roupa, digna de um dia de verão à beira mar, não havia sido a escolha mais estúpida a se fazer, o dourado da fantasia improvisada ofuscado pelo clima, os pêlos do corpo arrepiando com a garoa fina que caía do céu.
Mas lá estava ele de repente, o grande astro rei em todo seu esplendor.
Foi como acordar de súbito de um sono pesado sem despertar do sonho que o acompanhava. Aquilo era o sonho. Desperto mas perpetuado pelo pulsar constante, firme e ritmado da imensa bateria que abria alas para o caminhar do povo, numa via que cotidianamente, estaria tomada de carros cuspindo fumaça para o céu, pessoas cansadas seguindo seus caminhos e pragas da cidade correndo entre as pedras.
Mas não hoje, não agora. Afinal, é um dia de celebração.
O gosto dele ainda não se perderá na minha boca recém mordida. Gosto de Jojo, mordida de início contida, mas ganhando velocidade e intensidade como se seguisse o ritmo da música, mordida que foi interrompida, quando o grande cortejo se preparou para fazer uma curva não muito acentuada, para uma descida não muito íngreme.
Sinalizando para meu íntimo um gracejo convidativo, os mestres de percussão do bloco Baianas Ozadas estavam cercados pela visão de um mar de pessoas ocupando por inteiro, c o m p l e t a m e n t e, toda larga avenida Afonso Pena, se amontoando na rabiola do trio elétrico, que já seguia mais da metade da Avenida Amazonas.
Um mar de pessoas… o jornal anunciava há dias: “esse será o maior Carnaval de Belô” e então eu estava diante dele.
O Sol brilhando sobre as altas palmeiras quase estáticas reflete nos foliões um brilho, se de suor, se glitter, se de alma, não consigo dizer. Todos brilham, até talvez mais que meu conjunto dourado. Estamos todos embriagados. Imagino que a mesma sensação de ebriedade que me toma é conhecida de todos ali. A sensação de formigamento nas extremidades, o calor gostoso que toma o corpo partindo do tronco, a súbita e incontrolável vontade de sorrir. Afinal estão todos sorrindo, dançando, cantando, cantando e cantando.
O típico fedor de suor, perfume, cerveja e cosméticos misturados agora não é só agradável como familiar e aconchegante. Copos são lançados ao ar, latinhas vazias ao chão. Esbarrões desordenados, flertes caóticos, olhares inquietos.
“É o final
da odisséia
terrestre…”
E de repente o mar de pessoas que há pouco eram gotas solitárias agindo em linda rebeldia, se entregando aos seus desejos, agora é uma grande onda de palmas coordenadas, um oceano harmônico entoando:
“Minha pequena Eva
O nosso amor na última astronave”
Um mar de pessoas alegres cantando. Como se não houvesse problemas, como se não houvesse amanhã. Os dois últimos anos foram difíceis de engolir e aturar, 19 milhões de pessoas com fome, 12 milhões analfabetas, mais de 200 mil desabrigadas.
“ Toda a Terra reduzida a nada, nada mais
E minha vida é um flash (flash)”
E me vi nos olhos dele como se esses fossem espelhos, espelhos de Jojo, e percebi com grande ironia que eu, cheio dos meus problemas, estava ali tentando mensurar os dos outros.
Talvez de fato estivessem certos quando disseram que o brasileiro é o povo mais feliz do mundo, apesar de que não consta essa informação no World Happiness Report (Pois também não é como se eles pudessem mensurar o que sente um autêntico brasileiro).
“Me abraça pelo espaço em um instante”
Ou talvez o Carnaval fosse não só a maior festa do planeta, como a maior válvula de escape conhecida pelo homem, sobretudo um brasileiro carnavalesco, que só precisa de um instante sem preocupações, um instante sem a terra, um instante sem dor. Assim sendo, o carnaval é como um corpo que cobre e dá forças para viver.
E tão facilmente quanto uma única canção me afogou na reflexão profunda de navios naufragados, uma nova canção me trouxe a luz, foi a boia que me guiou a verdade. O povo brasileiro transforma a lágrima em alegria. A bateria é preparada para troca de ritmo e começa.
“Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”