Resiste o som do batidão
Apesar da falta de apoio, funk e bailes funks se tornaram um símbolo de resistência e identidade para a cultura negra.
“E o povo ‘tá’ ligado no compasso dessa dança, esse ritmo é gostoso, até defunto se levanta”. O verso presente no primeiro álbum de funk brasileiro, Funk Brasil Vol.1, lançado em 1989 pelo DJ Marlboro, previu o reconhecimento que o gênero musical teria no país anos depois. Após três décadas, o ritmo que conquistou as grandes massas com o “batidão” e os “passinhos” ainda sofre com estigmas e preconceitos, mas resiste às repressões nas comunidades brasileiras.
A novela “Vai Na Fé”, veiculada pela Globo em 2023, marca o auge do cenário do funk no país ao retratar em sua trama a efervescência cultural dos bailes funks cariocas na década de 1990. A história e o ritmo da periferia, apropriados pela indústria cultural, agora fazem parte da narrativa principal de uma das produções mais assistidas da emissora, o que reforça a aceitação do gênero no país. Porém, é perceptível a diferença entre a receptividade do funk direcionado às massas e o funk popular, produzido e reproduzido nas periferias dos grandes centros urbanos.
A professora e pesquisadora em arte contemporânea na Universidade Federal de Viçosa e doutora pela Universidad Complutense de Madrid, Mariana Lopes Bretas elucida que as barreiras entre a cultura de massa e a cultura popular “se diluíram”. Ou seja, na contemporaneidade, há uma troca e interação entre os diferentes tipos de cultura, provocada, principalmente, pelo desenvolvimento da tecnologia e pela difusão da internet.
“Uma cultura vai estar num meio de massa, por exemplo, numa abertura de novela ou na temática dela. São essas fronteiras, é nesse sentido que eu digo que a própria indústria cultural, quando ela ‘sente o cheiro’ de algo que pode comercializar, então, obviamente ela também capta isso”
– Mariana Lopes Bretas
Mas por que, mesmo com a transformação do ritmo em mercadoria e a sua predominância expressiva nas paradas musicais do país, a cultura do funk não é valorizada como parte legítima da cultura brasileira?
Desde o seu surgimento nos Estados Unidos, na década de 1960, o funk está intimamente ligado à cultura popular, sobretudo à cultura negra, uma vez que mesclava soul, jazz e blues. No Brasil, o Miami Bass – estilo de música eletrônica com batidas rápidas e letras eróticas – foi responsável por influenciar, em meados de 1970, a origem e a popularização do funk nos bailes promovidos nas periferias do Rio de Janeiro. Aqui, a batida incorporou elementos culturais e outros ritmos tradicionais do país, como o samba, o forró e a música folclórica.
A doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Juliana dos Reis, juntamente com a mestranda em Educação pela UFMG, Luísa Nonato, publicaram na Revista Continentes, em 2022, um artigo que analisa os sentidos das experiências em um baile funk no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte. De acordo com as pesquisadoras, os bailes representam um espaço de resistência e reafirmação identitária, sendo uma importante possibilidade de lazer e sociabilidade para os jovens negros e moradores da periferia urbana, mesmo com a repressão policial. Ainda, Reis e Nonato deixam claro a razão pela qual a cultura do funk não é genuinamente aceita na sociedade brasileira.
“As territorialidades da cidade espelham as múltiplas desigualdades. Desigualdades socioeconômicas, de gênero e sexualidade, racismo, violência policial, são dimensões presentes no baile. Compreendemos que a criminalização das culturas juvenis das periferias das cidades revela faces do racismo estrutural no Brasil em que o direito ao território é vivenciado de forma desigual”
– Reis e Nonato.
Em Viçosa, Minas Gerais, a cena do funk vem ganhando destaque desde 2018, quando bailes começaram a ser organizados no bairro Bom Jesus pelo projeto Conscientiza BJ, que funcionou até 2020. A partir daí, o “Baile da Igrejinha” passou a ser organizado pelo produtor de eventos e designer gráfico, Higor de Souza. Para ele, os eventos são uma alternativa para o entretenimento e lazer da população e exercem função social, já que a entrada é garantida pela doação de alimentos, que são repassados para os moradores do bairro em vulnerabilidade.
De acordo com o produtor, o Bom Jesus “é um dos bairros com maior público universitário presente nos eventos do baile”, afirmou, ressaltando que a segurança é o principal motivo para o comparecimento do público. Mesmo assim, Higor reforça que há uma barreira para a aceitação das identidades e culturas representadas pela periferia.
“Nós temos que tomar bastante cuidado e sermos sinceros, o preconceito em si é pela comunidade. Qualquer bairro periférico da cidade de Viçosa vai sofrer preconceito. Desde ‘baculejo’ da Polícia, até nos olhos dos próprios habitantes, das próprias pessoas que moram em bairros diferentes”, relatou o organizador do baile.
Para superar esse mal, é importante que políticas públicas efetivas sejam colocadas em prática como forma de valorização e inclusão dos bailes funks no circuito cultural da cidade, da mesma forma que outros ritmos. O chefe do departamento de Cultura de Viçosa, Marcelo de Oliveira, afirma que, na gestão atual, não existe um evento direcionado ao movimento do funk, “mas eles estão inseridos de alguma forma em alguns outros eventos que a gente promove”, explicou. Ainda, para o gestor, é fundamental a abertura de espaços que promovam debates sobre diferentes culturas, para que se entenda as realidades existentes na cidade.
“A gente tem uma frente aberta na Secretaria, que é o que amplia o nosso braço de ação, que são os apoios que nós oferecemos. Então, temos alguns formulários no nosso site oficial para todas as pessoas que precisarem, artistas ou alguém que queira fazer algum evento na comunidade”, elucidou.
A Secretaria Municipal de Cultura, Patrimônio Histórico, Esportes e Turismo busca apoiar as demandas dos artistas e produtores culturais através de editais internos que garantem, de alguma forma, a pluralidade e a valorização dessa diversidade cultural na cidade.