O Brasil carrega uma tradição de matar povos indígenas?
Os povos indígenas representam menos de 1% da população brasileira, fato este que decorre do genocídio histórico em nosso território.
Quando atendeu a reportagem de O TEMPO às 10h16 daquele sábado, 1° de abril, Ailton Krenak estava longe de casa, em Teresina (PI). Na capital piauiense, o escritor, poeta, líder indígena, ativista ambiental e mais novo membro da Academia Mineira de Letras (AML) participava de rodas de debates e lançamento de “Futuro Ancestral” (Companhia das Letras), seu livro mais recente. “Estou aqui tomando cajuína e lembrando da canção de Caetano Veloso, “a cajuína cristalina em Teresina”, Krenak cita um verso de “Cajuína”.
Com a mulher, Ni Krenak, e o filho Nakatã – a outra filha do casal, Nouá, mora em Vitória -, o escritor vive no território indígena Krenak, entre Resplendor e Conselheiro Pena, na região do Rio Doce, mas passa boa parte do tempo viajando a trabalho, sobretudo com a divulgação do livro. “Eu queria voltar para casa, mas não sei se consigo, tenho que dar um nó aqui”, ele diz.
Primeiro indígena a assumir uma cadeira em uma academia de letras do Brasil, Ailton Krenak celebra a representatividade e fala sobre ditadura, governo Lula e violência contra os povos originários em Minas Gerais.
“O Equador tem quase 70% da população formada por indígenas; na Bolívia, mais de 50%. O Brasil acabou com os indígenas. Não Chegamos a ser 1%”
Ailton Krenak
Neste 1° de abril, são lembrados os 59 anos do golpe militar. A ditadura foi violenta contra os povos indígenas. Em Resplendor, teve o Reformatório Krenak, um centro de tortura e trabalho escravo. Qual é a marca da ditadura em você e em seu povo?
A marca da morte. Todo povo que sofreu esse colapso ficou marcado com essa terrível perda da fé na vida, porque a fé na vida não é só uma ilusão, é uma experimentação. Se você tem negado o direito de viver, não só do indivíduo, mas da coletividade – o que caracteriza etnocídio, com a proibição da língua, dos costumes, da religião (era o que os nazistas queriam fazer com judeus, ciganos) -, significa matar o corpo e o espírito, cauterizar e não deixar memória.
Lembra o que os portugueses fizeram com a Inconfidência Mineira – esquartejar Tiradentes, queimar os restos, jogar as cinzas fora e jogar sal no terreno para não aparecer nem grama? Tentaram aniquilar os Krenak, as pessoas que estão vivas hoje são mutiladas psicologicamente, fisicamente e desconfiam da vida.
Lula assumiu a Presidência pela terceira vez. Dias depois, foi criado o Ministério dos Povos Indígenas. O que se pode esperar das políticas públicas?
Criar o Ministério dos Povos Indígenas é mais do que um pedido de perdão. O papa já pediu perdão, todo mundo pede, mas o ato de criar um ministério é mais efetivo que um pedido de perdão, porque inclui a voz plural dos povos indígenas no desacordo da governança. Não é acordo, o pau vai quebrar, não tenho dúvida. Todos os fascistas que queriam acabar com os indígenas estão armados até os dentes para sabotar o governo Lula.
Parece que as pessoas pensam que não tivemos Bolsonaro no caminho. Bolsonaro queria matar os índios, destruir as terras indígenas. Temos que lembrar o que aconteceu ontem para cobrar hoje. Não vou querer que de uma hora para outra o governo Lula resolva tudo.
Pessoas indígenas estão ocupando espaços de poder e decisão. Como você analisa o momento?
Elas têm que ter ciência de que assumem um lugar de alto risco, não é privilégio.
É um risco grave de ser aniquilado ou de ficar com a biografia suja, porque é entrar num aparelho do Estado sabendo que ele é colonial e sempre teve dono. Não é confortável. É diferente para os brancos. Os brancos entram nesses organismos para ficar. Alguns têm aposentadoria vitalícia. Os negros e os indígenas têm que ficar espertos, estão passando por um organismo estranho, que não vai assimilar a presença deles.
Quero ver quando o Estado brasileiro vai conseguir vomitar o genocídio histórico. Além da tentativa pontual de matar um ou outro povo, o Estado brasileiro tem a tradição de matar índio. É diferente de Bolívia, Peru, Equador, Venezuela… O Equador tem quase 70% da população formada por indígenas; na Bolívia, mais de 50%. O Brasil acabou com os indígenas. Não chegamos a ser 1%. O IBGE fala que somos novecentos e poucos mil sujeitos (Censo 2010).
Há uma tentativa sistemática de apagamento da cultura, identidade e memória indígena?
Sim, isso repercute uma declaração de dom João VI. A família real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro em 1808. O primeiro ato do dom João VI foi atender a um pedido dos colonos da floresta do Rio Doce, que tentavam colonizar a região e não conseguiam porque os índios não deixavam, resistiam. Os colonos foram ao Rio e pediram para dom João VI declarar guerra de extermínio contra os Botocudos. Dom João VI estava sem grana, precisava de propina, assinou uma declaração para mandar matar todo mundo e arrumou uma grana para se estabelecer no Rio de Janeiro.
A história do Brasil é assim, é trocar fazenda por terra indígena, trocar favores com fazendeiros, aniquilar o povo indígena.
Você assumiu, em março, uma cadeira na Academia Mineira de Letras. Como isso pode reverberar?
Foi muito além do que eu podia imaginar quando vejo a repercussão.
Saiu uma matéria na revista “piauí”, mais de um mês depois do evento. Uma matéria que vai ser lida por milhares de pessoas em Minas e fora de Minas falando de literatura, da academia, mas principalmente do fato de o sujeito que foi convidado a estar dentro dessa academia ter uma biografia de luta. Não sou puxa-saco das letras brasileiras, eles sabem que estou lá com as minhas idiossincrasias, com as minhas contradições. Não estou lá para bater continência.
Os jovens indígenas, esses que estão em escolas precárias nas aldeias, alguns saindo para fazer curso técnico e faculdade, isso dá a eles um exemplo de coragem. Principalmente às mulheres indígenas e à juventude, representada nessa destacada presença da Célia Xakriabá (deputada federal).
A presença indígena, não só em mandato político, é importante na vida cultural do país. São exemplos para meninos e meninas saírem da aldeia de cabeça erguida, em vez de esconder que são índios. Os pais deles tinham que se esconder, se esgueirar pelas beiras.
Matéria reescrita por Luisa Souza e Iara Maria