Analisando a Equidade: Desafios e Reflexões sobre as Disparidades de Gênero no Serviço Público do Brasil

Por: Alicia Moliari, Lavínia Arruda, Marcos Geovane e Maria Elisa Penna


Marilyn Loden, escritora norte-americana e defensora da igualdade de gênero, utilizou pela primeira vez a expressão “teto de vidro” (ou em inglês, “glass ceiling“) em 1978. Naquela ocasião, ela empregou tal termo com o intuito de descrever uma barreira imperceptível que impede as mulheres de ascenderem a cargos de liderança mais elevados nas empresas ao redor do mundo.

No cenário dinâmico dos cargos públicos no Brasil, não obstante da expressão cunhada por Loden, as nuances da representatividade de gênero têm despertado interesse e discussão, muito por efeito da crescente conscientização acerca da equidade entre servidores e servidoras de todas as esferas do Serviço Público nacional. As dinâmicas complexas por trás das disparidades nesses empregos refletem uma série de problemas na estrutura social, incluindo diferenças salariais entre homens e mulheres e até casos de violência – problema esse que, infelizmente, não se limita apenas ao ambiente de trabalho.

Por fim, a trajetória da figura feminina através dos desafios presentes no contexto dos cargos públicos no Brasil destaca não apenas sua persistência, como também a complexidade das barreiras enfrentadas ao longo da busca pela representatividade. Dessa forma, podemos perceber que as diferenças, aqui, vão muito além das médias salariais – elas estão enraizadas em fatores estruturais e culturais muito mais herméticos. O desafio a partir de tal ponto é não apenas reconhecer essas disparidades, mas também promover mudanças efetivas que permitam a ascensão do feminino, desmontando, assim, os obstáculos que compõem esse “teto de vidro”. 

A disparidade salarial

‎Um dos fenômenos que mais exemplicam essa essa desigualdade é a disparidade salarial presente no ambiente profissional em questão. Em uma primeira análise, é relevante citar que, de acordo com os dados da Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2017, os cargos do Serviço Público eram ocupados majoritariamente por mulheres; porém, os salários não acompanham essa distribuição.

Surpreendentemente, apesar da representação significativa, como dito acima, os salários não refletiam a igualdade de gênero esperada. O estudo do IPEA também revela que, ao se considerar o funcionalismo público dos três poderes, os homens detêm sempre os maiores salários, sendo essa discrepância maior no Poder Executivo.

Dentre as possíveis causas desse cenário, se destaca a segregação de gênero, que faz com que a atribuição das mulheres seja aos cargos de menor prestígio e remuneração. Essa segregação, por sua vez, ganha força na limitação do acesso a posições de liderança, minando assim a possibilidade da figura feminina ocupar cargos mais elevados e que influenciam decisões estratégicas.

Além disso, vale ressaltar que as barreiras enfrentadas por elas no ambiente profissional não se prendem somente à disparidade salarial. A imposição de imaginários culturais e expectativas sociais muitas vezes acaba por resultar em uma carga desproporcional de responsabilidades domésticas para a figura feminina, tornando dificultosa a conciliação entre carreira e vida pessoal.

A representação em cargos de liderança

A divisão sexual do trabalho é uma afirmação analítica que estrutura os debates feministas e as demandas por igualdade de gênero. Conforme revelam pesquisas recentes, veiculadas ao público pelo site da Agência Brasil, a participação das mulheres em cargos de alta liderança na administração pública federal experimentou um crescimento cumulativo de 17% em quatro meses, passando de 29% em dezembro de 2022 para 34% em abril deste ano. Esse aumento foi impulsionado pelo estímulo à ampliação do acesso e, principalmente, pela permanência de lideranças femininas na alta gestão pública, contribuindo para uma representação mais fiel da diversidade da população brasileira. Para melhor compreensão, é relevante ressaltar que os cargos de alta liderança no setor público federal incluem posições como coordenação, assessoria, diretoria, superintendência, secretaria executiva e ministérios.

Em entrevista, Gabriel Penna, atual procurador municipal do município de Itabira e conselheiro no Conselho da Mulher, graduado em Direito pela UFV (Universidade Federal de Viçosa) e Mestre em Políticas Públicas pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), onde se dedicou ao estudo de políticas públicas para a família e às relações entre políticas públicas e gênero, revela à reportagem que: “O Governo federal, especificamente, vem incentivando que haja a nomeação de mulheres em cargos de alta gestão há algum tempo, mas não existe um programa específico, com metas claras, bem institucionalizado. Existe esse incentivo, no ponto de vista da cultura organizacional, mas não existe, de maneira unificada, políticas públicas nesse sentido”.

Nesse sentido, ao analisar a participação das mulheres em cargos de liderança dentro do setor público, tornam-se evidentes as desvantagens dadas aos cargos oferecidos às regentes femininas em relação aos postos de decisão na administração pública brasileira, que são os cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS), dispostos em diferentes escalões de maior e menor poder de decisão. Também no estudo da Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho, acerca da ocupação dos cargos DAS no contexto do Poder Executivo, percebe-se que, quanto maior for o nível dentro da divisão de Direção e Assessoramento Superior, menor é a participação de mulheres em sua ocupação, mostrando que, após anos de emancipação feminina e de luta pela igualdade de direitos, a balança de distribuição de cargos, funções e gratificações no serviço público brasileiro ainda pende para o lado masculino.

Ainda em contribuição para o desenvolvimento da reportagem, Penna afirma: “Em termos de setor público, hoje, se olharmos em proporção de gênero, temos uma maioria de mulheres, em termos globais. Quando desagregamos isso, percebemos uma concentração muito maior de mulheres nos municípios, nos estados, e nos últimos dados, mais fidedignos, que são os dados do Atlas do Estado Brasileiro, apontaram que, em 2019, no setor federal as mulheres eram minoria, em proporção 60% a 40%”.

Quando chegamos no topo das carreiras, que são, em geral, de indicação política, temos uma presença menor de mulheres nesses setores.

Conclui Gabriel.

Quanto ao espaço das mulheres na ocupação de cargos NES (Cargos em Comissão de Natureza Especial), segundo informações do Painel Estatístico de Pessoal de setembro de 2022, mostram que, embora as mulheres representem 41,4% dos servidores efetivos, apenas 8% dos cargos de Natureza Especial são ocupados por elas. A participação feminina diminui ainda mais quando consideramos exclusivamente as mulheres negras (menos de 4%), enquanto 70,9% desses cargos são ocupados por homens brancos.

Em uma análise comparativa sobre as consequências dos papéis de gênero tradicionais nas atuais disparidades de gênero na ocupação de cargos que dispensam concursos públicos para sua efetivação, o especialista entrevistado enfatiza: “É necessário entender que existem fatores explicativos, que são muito importantes, tanto falando do ponto de vista salarial quanto quando falamos de ocupação de cargos de gestão, é que ingresso no setor público, ser funcionário de carreira e escolaridade não explicam a diferença entre homens e mulheres, já que as mulheres já ingressam com bastante prevalência no setor público e são mais escolarizadas do que os homens há pelo menos 30 anos”.

Além disso, de acordo com Penna, o poder do machismo institucional em promover a ideia de que as mulheres devem ser vistas como pessoas mais operacionais e menos diretivas deve ser confrontado com a divisão sexual do trabalho doméstico: “Para muitas mulheres é difícil conciliar cargos de gestão com os afazeres domésticos que são, em sua maioria, responsabilidades femininas, na sociedade se espera que as mulheres, mesmo as que possuem trabalho assalariado, executem, de maneira gratuita, o trabalho doméstico em sua totalidade, o que pode até mesmo impedir que as mulheres ocupem cargos que exigem uma grande quantidade de tempo”.

Portanto, embora a escolaridade e a experiência no setor público sejam importantes para a ascensão das mulheres na carreira, ambos os aspectos perdem relevância quando inseridos na equação de gênero, uma vez que os fatores explicativos para a disparidade de gênero abrangem diversas questões de naturezas distintas – ainda que todas alimentem a desigualdade da mesma forma. É evidente que a discriminação contra mulheres em posições estratégicas é estrutural na sociedade, e não apenas restrita à Administração Pública Federal. Diariamente a presença feminina nesses cargos é desqualificada e inferiorizada em suas formas de atuação como uma tentativa costumeira de descrédito à capacidade de trabalho das mulheres em seus setores.

Através de dados obtidos ao longo do tempo em diversas pesquisas, constata-se que a mulher continua a sofrer preconceitos validados por códigos masculinos em sua busca por ascensão a posições de maior liderança no setor público, fazendo com que estas tenham que provar, constantemente, sua competência profissional. Dentre os vários desafios enfrentados pela figura feminina na busca por cargos mais altos, cabe mencionar a dificuldade de compensar os estereótipos de fragilidade e as barreiras à ascensão em ambientes desfavoráveis ao reconhecimento de seus potenciais de trabalho. Então, mesmo que, geralmente, elas possuam maior qualificação que os homens, tal fato não é refletido nos seus salários e nos cargos por elas ocupados.

Em relação às disparidades salariais acerca dos cargos públicos ocupados por mulheres e homens no Brasil, Gabriel Penna afirma: “Os dados nos apontam que a diferença remuneratória não tem diminuído com muito vigor. Quando você pega os setores federal, estadual e municipal, homens ganham mais que as mulheres e não teve uma diminuição tão considerável. […] Isso se dá muito pelo efeito estatístico de que cargos menos remunerados são cargos tipicamente femininos, contribuindo com a diferença média salarial entre homens e mulheres”. A falta de representação em espaços de liderança aumenta, cada vez mais, a desigualdade de gênero nos espaços de trabalho do setor público, o que afeta diretamente o avanço de políticas públicas voltadas para parcela da população impedida de ascender aos postos mais altos de liderança por conta dos mecanismos de segregação. 

Dessa forma, olhando de um cenário macro, essa diferença ainda persiste e segue muito alta, mas olhando em um cenário mais específico, essa diferença tem diminuído embora ainda haja uma maioria masculina.

Finaliza o atual conselheiro do Conselho da Mulher a respeito da problemática indicada. 

O contexto do estado de Minas Gerais

Devido ao fato de Minas Gerais ser um dos estados brasileiros com maior contingente de servidores públicos, é crucial saber se a estado segue a tendência discutida até aqui. Conforme revelado por um estudo da Revista da Administração Pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas) sobre desigualdades na remuneração entre os servidores públicos mineiros, a disparidade de gênero emerge como um dos fatores mais preponderantes. O artigo destaca que um militar possui uma remuneração média por hora quase sete vezes superior à de um auxiliar de serviços de educação. Notavelmente, as mulheres tendem a ocupar predominantemente a segunda opção, privando-as do acesso aos melhores cargos e salários.

O estudo também ressalta que essas disparidades são reflexo da persistência de uma sociedade patriarcal no ambiente público. Os concursos públicos em Minas Gerais, assim como em outros lugares, exigem um investimento significativo de tempo e preparação para acessar cargos mais elevados. No entanto, devido à persistência de estruturas patriarcais, observa-se que as mulheres enfrentam desafios desiguais nesse processo. Entre os fatores contribuintes, destaca-se a imposição de responsabilidades domésticas como uma segunda jornada, uma realidade menos comum para os homens. O gráfico abaixo, obtido através de dados da Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho, mostra a realidade dos servidores, tanto homens quanto mulheres, do Poder Executivo do estado de Minas Gerais:

Para compartilhar sua perspectiva sobre as questões abordadas, Flávia Arruda, Auditora Interna da UFV (Universidade Federal de Viçosa), discorre a seguir. Segundo ela, nos cargos providos por concursos públicos, é possível encontrar uma maioria quantitativa de mulheres. Contudo, nos cargos comissionados, ou seja, nas posições de liderança preenchidas por indicação, observa-se uma predominância de homens. Confira o depoimento:

Considerações finais

Em suma, toda a discussão proposta por essa reportagem tem como objetivo a análise da equidade de gênero nos cargos comissionados do Serviço Público brasileiro – um setor muito amplo e, por vezes, muito complexo.

As disparidades pontuadas se mostram reflexos de questões enraizadas em níveis profundos do tecido social, o que exige uma abordagem multifacetada e que vise uma promoção efetiva de um posicionamento capaz de iniciar mudanças.

Ao passo que ponderamos e trazemos mais visibilidade para esses obstáculos, é crucial, também, reconhecer os avanços já alcançados e, também, destacar os inúmeros esforços individuais e coletivos dedicados a superar tais desigualdades – posto que, sendo não apenas uma questão de justiça social, a promoção da equidade de gênero também se mostra como uma ferramenta essencial para o desenvolvimento inclusivo no território nacional.

Metodologia

Os dados utilizados na elaboração desta reportagem foram obtidos por meio do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, além de terem sido extraídos de um dos Relatórios Gerenciais elaborados pela Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho, integrante do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos.

O documento que contém o estudo do IPEA, que foi acessado através do Atlas do Estado Brasileiro (plataforma de dados integrados sobre a estrutura organizacional e de pessoal do Estado desenvolvida pelo IPEA), discorre sobre a distribuição dos vínculos formais de trabalho no setor público, por sexo. As análises do estudos são bastante amplas, permitindo, em alguns dos gráficos, até mesmo a filtragem por estados; por região; a nível federal, estadual ou municipal; e a nível dos 3 poderes. O estudo também aborda questões acerca da remuneração no Setor Público, por sexo, e a diferença entre remuneração média mensal feminina e masculina.

Já o Relatório Gerencial produzido pela Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho, que foi acessado através do próprio site do Governo (que inicia o download do PDF imediatamente após clicar para acessar), discorre sobre os servidores públicos classificados por gênero no Poder Executivo. O estudo também aborda o quantitativo de servidores ocupantes de cargos efetivos por sexo e Unidade da Federação (UF), além do quantitativo dos servidores ocupantes de cargos e funções comissionados.

laviniarruda

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