Mulheres destinam cerca de duas vezes mais horas semanais ao trabalho de cuidado e doméstico em relação aos homens
Em 2019, as mulheres brasileiras dedicaram cerca de 21% a mais de horas voltadas ao trabalho de cuidado e doméstico
A média de mulheres que dedicam horas semanais aos trabalhos domésticos e de cuidados era de 42,7%, enquanto a de homens era de 21,9%, registrando uma diferença média total de 20,8% entre esses dois gêneros, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE) do ano de 2019. Dessa forma, este tipos de trabalhos são majoritariamente realizados pela população feminina no país.
O trabalho de cuidado é um termo utilizado para se referir às atividades exercidas por pessoas que prestam serviços com a finalidade de atender às necessidades de outros indivíduos. Esse tipo de trabalho também inclui a criação e desenvolvimento de crianças e jovens, assim como também afazeres domésticos. Recentemente, esse debate ganhou grande repercussão, devido ao tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023 “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”
A luta pela visibilidade e reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidados realizado pelas mulheres já têm algumas décadas, através dos movimentos feministas, autoras relevantes, avanços significativos em alguns países latinos, como a Argentina, que por meio da aposentadoria de mulheres que se dedicam ao trabalho doméstico.
“A gente tem um movimento muito importante na década de 70 na Itália, nos Estados Unidos que vai pensar a remuneração do trabalho doméstico e o próprio feminismo, a partir da década de 60 as diversas ramificações dele estão pensando esse trabalho realizado socialmente pelas mulheres como um trabalho, retirando ele como se fosse uma atividade gratuita ligada ao amor.”, aponta a socióloga Tabata Berg.
Para a doutora em sociologia e pesquisadora nas áreas de teoria social, teoria social do trabalho, teorias de gênero, sociologia das relações étnico-raciais e sociologia das desigualdades sociais Tabata Berg, os trabalhos de cuidados estão historicamente ligados ao trabalho sexual realizado majoritamente por mulheres negras escravizadas ao longos dos anos, criando um processo de terceiração de cuidados, no Brasil.
“Se por um lado das mulheres da classe trabalhadora elas vão cuidar de si, dos seus filhos e dos seus companheiros, dos seus irmãos, dos seus pais, também cuidando dos idosos, das pessoas com deficiência, essas mulheres também vão exercer uma outra função, que a função de cuidadoras dos filhos das classes médias e burguesas.”
Tabata Berg, Doutora em Sociologia
De 2016 a 2019, a média total de mulheres pretas e pardas que realizam o trabalho de cuidado e afazeres domésticos subiu 4%, em comparação com as mulheres brancas, saindo de 0,7% para 1,2%.
A pesquisadora conta que esse processo, que perdura até os dias atuais como evidencia o dado acima, tem seus primórdios na Idade Média, com a caça às bruxas sendo um fator central para o enclausuramento das mulheres dentro de uma nova instituição: o lar, onde se foi retirado o controle e poder das mesmas sobre as gestações e corpos. Logo após no Renascimento, que segundo Tabata ‘foi muito bom para os homens’, mas para as mulheres estabeleceu uma cultura negacionista quanto ao prazer feminino através do sexo, bem como tornou de fato o sexo um trabalho e os trabalhos domésticos e de cuidados passaram a ser exclusivamente das mulheres.
Reflexo dessa realidade é a quantidade de horas que as mulheres gastam com trabalho de cuidado por semana em comparação aos homens, sendo 9,6 horas a mais. Os dados são recentes, respectivos à 2022, coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua Outras Formas de Trabalho e disponibilizadas pelo IBGE.
Como exemplo vivo desse trabalho de cuidado, em entrevista dada para esta reportagem, Maria do Carmo Mendes do Valle, mãe, atualmente aposentada e dona de casa, conta sua trajetória de vida, no qual exerceu em boa parte dela o trabalho de cuidado.
Nascida na década de 50, no interior de Minas Gerais, Maria começou a realizar os trabalhos de sua casa desde bem nova, sendo a mais velha de 12 irmãos, até seus 14 anos de idade ajudava sua mãe a cuidar dos afazeres domésticos e de seus irmãos mais novos.
“Os homens não faziam esse trabalho, eu ajudei muito minha mãe, todo ano tinha filho pequeno, novos bebês, então até os meus 14 anos eu tinha que ajudar em tudo. Foi quando fui para cidade estudar, mas nas férias de julho voltava para casa para continuar as mesmas tarefas de antes”
Maria do Carmo Mendes
Ao se mudar para a casa de sua avó, Do Carmo, realizava trabalhos domésticos em troca de comida e um lugar para ficar. Durante a década de 70, ainda não existiam colégios públicos para Ensino Médio, então Maria passou a fazer jornada dupla, trabalhando também fora de casa para conseguir pagar seus estudos.
O trabalho de cuidado perdurou mesmo após sair de sua cidade natal e migrar para Belo Horizonte. Na capital mineira, continuou trabalhando fora, para ajudar com as contas de casa, e cuidando de seus irmãos e pais, que agora já eram mais idosos. Com o casamento e filha, sua realidade não mudou, mas Maria conta que nunca foi um sacrifício para ela viver desse modo.
“Cuido da minha mãe, cuidei do meu pai até falecer, com muito carinho, e cuido até hoje da minha mãe, isso para mim é gratificante, é tudo estar ajudando as pessoas.”
Para Do Carmo, o trabalho de cuidado é ainda muito desvalorizado e acredita que para sair dessa situação é necessário estabelecer parâmetros iguais entre homens e mulheres.
Histórias como a de Maria do Carmo não são casos isolados no Brasil, e nos dias de hoje muito se debate sobre a questão social ao redor da invisibilidade da temática. Essa situação multifatorial se estende dentro das estruturas e paradigmas sociais, sendo em sua maioria desvalorizado por ser relacionado ao gênero feminino. Desse modo, afetando diretamente o reconhecimento social e a qualidade de vida de milhares de mulheres ao redor de todo país.
Em 2019, homens recebiam mais que a média brasileira, 2.555 reais, em comparação com as mulheres, que ganhavam em média 2.308 reais, com relevante variação entre as regiões do país. Enquanto, a região Nordeste tem a menor diferença percentual entre homens e mulheres, 7,36% equivalente a 128 reais, a região Sul tem o maior diferença percentual, 27,20%, equivalente a 787 reais, uma heterogeneidade salarial de quase 20% dentre as regiões brasileiras.
“A responsabilidade feminina pelo trabalho de cuidado ainda continua impedindo que muitas mulheres entrem no mercado de trabalho.”
Gabrielle Wakim, Coordenadora de Políticas Públicas para as Mulheres em Viçosa.
A economia possui grandes interesses no trabalho não remunerado que as mulheres fazem e, de certa forma, existe um controle do capital sob o trabalho de cuidado. A diferença de rendimento de trabalho habitual entre homens e mulheres no Brasil, em 2019, era de 22,3%. Mostrando, assim, que existe uma grande discrepância entre esses dois grupos.
Tabata aponta que as legislações que regulam os corpos das mulheres, como as leis antiabortos e que criminalizam essa ação, estão relacionadas à invisibilidade e a não remuneração desses trabalhos. Isso acontece, pois sem a possibilidade de abortar de forma segura, as mulheres são obrigadas a realizar o trabalho de cuidado e doméstico, além do trabalho fora de casa e, apesar de ser um serviço, não existe retorno econômico.
“A forma como o Estado controla o corpo das mulheres é um termômetro para demonstrar os avanços e os retrocessos na visibilidade e nas possíveis formas de equidade oferecidas ao trabalho de cuidados.”
Tábata Berg, Doutora em Sociologia
Uma das formas de trazer visibilidade ao trabalho de cuidado seria fomentar o debate acerca desse assunto em todos os ambientes sociais, desde o familiar até as escolas e empresas, atingindo toda a sociedade.
“Tem vários desafios que começam com a mudança da norma social ou então como a gente pode pensar nessa transição”, aponta Gabrielle. Além disso, uma alternativa para diminuir as horas semanais que o gênero feminino dedica a esse tipo de trabalho seria o aumento dos dias dedicados à licença de paternidade, assim como a maternidade. Pois, assim, ambos poderiam equalizar a quantidade de tempo voltada para o cuidado dos filhos. Dessa forma, uma regulamentação das leis seria indispensável para a mudança da invisibilidade do serviço de cuidado por parte da sociedade, especialmente das leis que dizem respeito às escolhas das mulheres e seus corpos.
No ano de 2016, a média total de homens que faziam trabalhos domésticos e de cuidado era de 22,1% e a de mulheres era de 41,8%, obtendo uma diferença média entre esses dois grupos de 19,7%. Ao comparar com a diferença média de 2019, que é de 20,8%, é possível observar que houve um aumento dessa disparidade de 1,1%. Dessa maneira, fica evidente que as mulheres continuam a exercer o papel principal quando se trata do trabalho de cuidado e doméstico.
Os dados utilizados nesta reportagem foram obtidos na plataforma do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio das tabelas 1.1 (Número médio de horas semanais dedicadas aos cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos das pessoas de 14 anos ou mais de idade, na semana de referência, por sexo e cor ou raça, com indicação do coeficiente de variação, segundo Grandes Regiões e Unidades da Federação), 3 (Taxa de participação na força de trabalho para pessoas de 15 anos ou mais de idade, na semana de referência, por sexo, com indicação do coeficiente de variação, segundo cor ou raça e grupos de idade) e 13 (Rendimento habitual de todos os trabalhos e razão de rendimentos das pessoas ocupadas de 14 anos ou mais de idade, por sexo, com indicação do coeficiente de variação, segundo deficiência e as Grandes Regiões) disponíveis nas Estatísticas de Gênero – Indicadores sociais das mulheres no Brasil.
Estes indicadores analisam as condições de vida das mulheres no país, fazendo uso de referências os metadados do Conjunto Mínimo de Indicadores de Gênero – CMGI (Minimum Set of Gender Indicators – MSGI) apresentado pela Divisão de Estatística das Nações Unidas (United Nations Statistical Division – UNSD). Vale evidenciar que o CMGI é formado por 63 indicadores, sendo 52 deles quantitativos e 11 qualitativos, utilizados por países e regiões a fim de produzir estatísticas nacionais direcionadas a mensuração da igualdade de gênero e o empoderamento da mulher, com a intenção de padronização e à comparabilidade internacional destas informações.
As pesquisas pautadas no Conjunto Mínimo de Indicadores de Gênero utilizam como fontes de informação dados derivados do IBGE, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), as Projeções da População por Sexo e Idade, as Estatísticas do Registro Civil, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), a Pesquisa de Informações Básicas Estaduais (Estadic) e a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic), assim como dados externos, resultantes do Ministério da Saúde, da Presidência da República, do Congresso Nacional, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
Os dados disponibilizados nesta reportagem, não correspondem à realidade pós-pandemia, tendo um linha cronológica de 2014 a 2019, devido a falta de periodicidade regular definida do estudo, fazendo uso da 2ª edição dos Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Ademais, as tabelas 1.1 e 13 trazem notas necessárias para a análise dos dados apresentados, sendo elas, respectivamente: Calculado apenas para as pessoas que declararam ter feito atividades de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos na semana de referência, exclusive as pessoas sem declaração das horas dedicadas às atividade de cuidados de pessoas e/ou afazeres domésticos na semana de referência; e os valores inflacionados para reais médios de 2019.
Reportagem por Sara Mendes, Letícia Guimarães e Rafaela Gomes.