O que pode haver por trás do processo de demarcação de terras indígenas

O que pode haver por trás do processo de demarcação de terras indígenas

Por Ana Luísa Medeiros, João Pedro Mageste, Julia Camim e Maíra Ferrari

Essa reportagem busca dar um panorama geral sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil, demonstrando, a partir da base de dados abertos disponibilizados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e também de entrevistas, quais são os processos de regularização fundiária e como eles podem se relacionar com o contexto histórico do país.

Em 1500, quando os portugueses chegaram no Brasil, existiam 3 milhões de habitantes nativos no país, os povos indígenas. Por conta de diversos processos violentos, desde 1500 até os dias de hoje, a população declarada caiu expressivamente. Em 2010, o IBGE declarou que existem 817.963 indígenas no Brasil, totalizando 0,37% da população total brasileira.

A partir de 1988, com a Constituição Federal, o Estado passou a aceitar os direitos desses povos, visando respeitar as suas tradições, organizações e culturas. Antes da Constituição, o Estado os obrigava a abandonar suas culturas e costumes, por meio da obrigatoriedade do português como idioma oficial nas escolas. Hoje, no Brasil, existem 305 etnias diferentes, 274 línguas e 624 terras indígenas (FUNAI, 2019). 

Apesar da Constituição, os povos indígenas ainda persistem na luta por respeito a sua cultura, histórias, tradições e travando, por necessidade, um árduo processo de resistência. Os territórios ocupados pelos mesmos, desde o início da história desse país, são frequentemente motivo de disputas que ameaçam sua reprodução física e cultural.

Demarcações territoriais são um direito e se tornam uma necessidade para os indígenas que desde a invasão colonizadora foram submetidos a diversas atrocidades, chegando até ao extermínio de alguns desses povos originários brasileiros.

A Terra Indígena (TI) é uma porção do território nacional habitada por uma ou mais comunidades indígenas, utilizada por estes em suas atividades produtivas, culturais, bem-estar e reprodução física. Além disso, se torna uma propriedade da União depois do processo de demarcação. Dessa forma, se trata de um bem da União, e como tal é inalienável e indisponível, e os direitos sobre ela são imprescritíveis.

 Nos termos da atual legislação (CF/88, Lei 6001/73 – Estatuto do Índio, Decreto n.º 1775/96), as terras indígenas podem ser classificadas como Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas, Reservas Indígenas e Terras Dominiais.

Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas

Representam territórios reconhecidos pela constituição como áreas habitadas em caráter permanente, utilizadas de forma produtiva, para a preservação de recursos ambientais e à necessidade para a sua reprodução física e cultural. Das 624 terras indígenas presentes no território brasileiro, 560 são tradicionalmente ocupadas, correspondendo a 89,7% das Terras Indígenas.

As fases do procedimento demarcatório das terras tradicionalmente ocupadas são definidas como:

  • Em estudo: enquanto há estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais, que fundamentam a identificação e delimitação da terra indígena;
  • Delimitadas: Terras que tiveram os estudos aprovados e que se encontram na fase do contraditório administrativo ou em análise pelo Ministério da Justiça;
  • Declaradas: Terras que obtiveram a expedição da Portaria Declaratória pelo Ministro da Justiça e estão autorizadas para serem demarcadas fisicamente, com a materialização dos marcos e georreferenciamento;
  • Homologadas: Terras que possuem os seus limites materializados e georreferenciados, cuja demarcação administrativa foi homologada por decreto Presidencial;
  • Regularizadas: Terras que, após o decreto de homologação, foram registradas em Cartório em nome da União e na Secretaria do Patrimônio da União. 

Diogo Lima, geógrafo, destaca a importância dessa conquista, que vai além de uma demarcação territorial, “Para os indígenas isso significa uma conquista importante, um reconhecimento do povo e da importância da terra para a vida desse povo. Por outro lado, a demarcação de uma porção delimitada do território nacional, reduz muito a ideia de território tradicional, para o qual os limites são fluidos, dinâmicos, extensos. Isso muda a dinâmica territorial do povo, que passa a ter que lidar com o recurso limitado, a habitação permanente, etc. Mas sem dúvida os indígenas reconhecem a demarcação de Terra Indígena como uma conquista, algo que os reconhece e que garante o mínimo direito à terra” 

Reservas Indígenas

São terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União, que se destinam à posse permanente dos povos indígenas. São adotadas as seguintes etapas do processo de regularização fundiária:

  • Encaminhadas com Reserva Indígena (RI): Áreas que se encontram em procedimento administrativo visando sua aquisição (compra direta, desapropriação ou doação);
  • Regularizadas: Áreas adquiridas que possuem registro em Cartório em nome da União e que se destinam a posse e usufruto exclusivos dos povos indígenas.

Terras Dominiais

Terras adquiridas por compra ou por doação e que são de propriedade apenas das comunidades indígenas.

Além dessas três modalidades, há também as Terras Indígenas Interditadas que não se configuram como modalidade, mas funcionam como instrumento administrativo utilizado para assegurar a proteção de comunidades indígenas até que o processo de regularização fundiária da terra seja concluído. São áreas com restrições de uso e ingresso de terceiros, considerando que pode haver um risco de conflito em decorrência das disputas pelo território em estudo.

Disputas e conflitos territoriais

As disputas por territórios entre indígenas e não indígenas são recorrentes ao longo da história brasileira e podem se relacionar com os processos e modalidades da regularização fundiária. 

A partir da base de dados da FUNAI, as regiões Sul, Sudeste e Nordeste além de serem as regiões com menor quantidade de Terras Indígenas, apresentam as maiores proporções de Reserva Indígenas e também a menor taxa de Regularização. 

É possível que esse cenário se apresente dessa forma devido ao contexto dessas três regiões de ocupação econômica intensa, maior densidade demográfica e um interesse político mais complexo, considerando que há poucas áreas desabitadas e muitas fazendas de grandes proprietários. Por isso, o processo de regularização é mais burocrático, envolvendo indenizações e processos de contestação dos ocupantes daquela terra. Por conta disso, “o conflito de interesses sobre a terra é maior, então o processo jurídico de regularização é mais lento e mais complicado, porque tem mais gente com poder de disputa em nível jurídico”, explica Diogo.

Além disso, essas regiões litorâneas foram as primeiras ocupadas pela atividade econômica, pelos colonizadores, e também, onde a população cresceu mais rapidamente, devido, inclusive, ao alto fluxo migratório. Isso contribui para a existência de poucas áreas sem ocupação populacional e econômica. Somado a isso, foram os povos originários do litoral que, devido a esse contato, sofreram maior extermínio e deslocamento forçado para o interior do país.

Por outro lado, as regiões Norte e Centro Oeste têm mais área natural preservada e disponível, considerando, por exemplo, a floresta Amazônica, assim como áreas de maior extensão, o que permite que existam menos conflitos de disputa sobre as terras. Além disso, grande parte do território é de posse da União, facilitando o processo de demarcação. Isso se confirma com a maior concentração de Terras Indígenas demarcadas nessas duas regiões. Entretanto, mesmo nessas regiões, a luta pela demarcação e as disputas por terras são intensas ao longo de toda história.

Pode ser também, por esses motivos, que nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste exista uma maior proporção de Reservas Indígenas, visto que essa modalidade não necessariamente diz respeito às terras originalmente ocupadas pelos indígenas, e que as regiões Norte e Centro Oeste tenham a maioria das Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas, concentrando 72,1% dessas terras do país inteiro. Além disso, por ser menos burocrática, 77,5% das terras tradicionalmente ocupadas do Brasil já estão regularizadas.

Gasodá Suruí, da aldeia Paiter, conta um pouco da história e cultura de seu povo, conhecido como Suruí de Rondônia, e do processo de luta pelo reconhecimento da terra onde vivem, conhecida como 7 de Setembro, a terceira maior terra, em perímetro, de Rondônia e que é tradicionalmente ocupada regularizada.

População indígena

Por outro lado, esse cenário de maior concentração de TI e população indígena nas regiões Norte e Centro Oeste pode se transformar a partir do processo conhecido como etnogênese.

Segundo a pesquisadora Clara Teixeira, que estuda, em sua tese, a etnogênese do povo Puri, o número das pessoas que se declaram indígenas aumentou, desde a década de 80, em algumas regiões, não necessariamente pelo aumento demográfico, mas por conta do ressurgimento de etnias consideradas extintas.

Uma vez que os indígenas são forçados a deixar o espaço que ocupavam por conta do desrespeito ao seu modo de vida e o risco de sofrerem violências, assim como do aumento do fluxo de pessoas e das atividades econômicas, a cultura começa a se dissipar e os povos começam a não se reconhecer e, por consequência, não se declarar como indígenas.

No momento, algumas comunidades indígenas passam por esse processo, em que esse grupo de pessoas vê a si próprio e é reconhecido por outros como um grupo étnico distinto, o que pode intensificar a reivindicação territorial nessas regiões litorâneas.

A pesquisa observa a autodeclaração desde 1500 e esse ressurgimento indígena após um grande período de etnocídio. Já os dados do IBGE foram computados apenas a partir de 1991, mas corrobora com essa hipótese do crescimento da autodeclaração de indígenas.

analumcmedeiros

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