Mais do que o diálogo sobre a educação sexual, é preciso responsabilidade dos parceiros na relação para frear as Infecções Sexualmente Transmissíveis
-24 de outubro de 2024
Mais do que o diálogo sobre a educação sexual, é preciso responsabilidade dos parceiros na relação para frear as Infecções Sexualmente Transmissíveis
Por
Alice Mochko
As Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) podem permanecer assintomáticas ou com sintomas pouco perceptíveis por um período determinado ou durante toda a vida do portador. Assim, a possibilidade de uma pessoa ter e transmitir uma infecção, mesmo sem sinais e sintomas, torna-se fator fundamental para a contaminação, de acordo com o Ministério da Saúde.
Para especialistas, além do diálogo aberto, é fundamental a atualização do discurso imperativo de “cuide-se”, para a autonomia, de “observe seu corpo e protagonize-se”, para prevenir e cuidar das ISTs que, além de pouco discutidas, especialmente entre os jovens, são normalmente tratadas de forma superficial, levando à desinformação e, consequentemente, ao aumento de sua incidência na população.
Em um ano, cerca de 1 milhão de pessoas afirmaram ter diagnóstico médico de Infecção Sexualmente Transmissível (IST), segundo o Módulo da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, realizado em parceria entre o Ministério da Saúde e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Conforme a professora da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora da área de saúde coletiva e da mulher, Mariana Santos Felisbino, o número se deve à mudança no comportamento sexual da população brasileira nos últimos tempos, que tem usado menos o preservativo: “fizemos uma análise da PNS de 2019 e nesta pesquisa, observamos a prevalência do uso consistente de preservativos em apenas 22,8% dos homens e, ainda menor entre as mulheres, de 20,9%”. Trata-se do que os profissionais de saúde têm chamado de efeito condom fatigue, termo usado para se referir ao fenômeno da diminuição do uso do preservativo.
Segundo análise da PNS, o principal motivo que tem levado ao não uso do preservativo é a confiança no parceiro (73,4%), com prevalência maior entre os homens (78,6%). Com base em sua atuação como enfermeira, Mariana destaca: “ouço muitos relatos de mulheres dizendo que os parceiros não querem usar camisinha por alegarem que o preservativo pode dificultar a ereção ou porque incomoda”. Mas, segundo reforça, “isso é algo convencionado na sociedade, sem comprovação científica”.
A pesquisadora também esclarece que a educação sexual é imprescindível para frear o avanço das Infecções Sexualmente Transmissíveis, principalmente porque a idade média de iniciação sexual na população brasileira caiu de 18 anos, ou mais, para 17,3 anos, conforme mostram os resultados da PNS. “A saúde sexual e reprodutiva deve ser prioritária. Presenciamos a mudança do comportamento das pessoas com as relações afetivas como, por exemplo, o poliamor, o relacionamento aberto, entre outros. No entanto, não parece haver espaço para discutir questões como o sexo seguro, que possam dar mais segurança para essas práticas”, sinaliza Felisbino.
Somado a isso, ainda persistem na sociedade tabus sobre sexo, que esbarram, muitas vezes, em questões relacionadas à moralidade e a aspectos ideológicos. No último governo, por exemplo, houve o recolhimento da “Caderneta Saúde do Adolescente” por essa não ser considerada adequada ao público. O material foi lançado em 2008 e tinha o objetivo de informar meninos e meninas de 10 a 19 anos de idade sobre cuidados básicos em saúde, a importância da vacinação, transformações do corpo na adolescência e métodos de prevenção à gravidez e infecções sexualmente transmissíveis.
O público masculino tem resistência em procurar ajuda médica de forma geral e, especialmente para tratar das ISTs, o que contribui com o ciclo de disseminação das infecções, conforme ressalta a médica ginecologista e obstetra da Divisão de Saúde (DSA) da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Tauana Vaz Almeida. Enquanto isso, para as mulheres, o diagnóstico de uma IST pode ser muito mais agressivo, por conta de suas oscilações hormonais mensais e outras características biológicas como a anatomia íntima da mulher, que facilita a entrada de germes, ressalta a médica. Tauana ainda chama a atenção para a responsabilidade coletiva em relação à prevenção: “O protocolo de tratamento estipulado a nós é o de ver e tratar. Assim que a mulher possui o diagnóstico de uma IST, o tratamento terá prosseguimento. Porém, é preciso também que o parceiro trate a infecção. Não podemos colocar a responsabilidade apenas nas mulheres, pois isso diz muito sobre os homens, uma vez que podem continuar repassando as infecções”, complementa.
Conforme explica Almeida, “se considerarmos o HPV [Papilomavírus Humano], por exemplo, na mulher ele provoca verrugas nas genitais e, no homem, apresenta apenas micro lesões”. O HPV, conforme a médica ginecologista, é um dos vírus que mais provoca Infecções Sexualmente Transmissíveis. A infecção afeta a pele ou as mucosas (oral, genital ou anal), provocando verrugas na região genital e no ânus e, a depender do tipo de vírus, o câncer. Em alguns casos, o HPV pode ficar sem manifestar sinais visíveis a olho nu por meses ou até anos. No entanto, a vacina quadrivalente contra o HPV é oferecida gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para meninas de 9 a 14 anos e para meninos de 11 a 14 anos de idade. Pela rede particular, o preço da vacina varia de R$900 a R$1.000 reais.
A sífilis, causada pela bactéria Treponema pallidum, é outra IST comum, que pode apresentar várias manifestações clínicas e diferentes estágios (sífilis primária, secundária, latente e terciária). Os sintomas variam de acordo com os estágios, podendo se apresentar em feridas, manchas, mal-estar, fadiga e entre outros.
Fora das relações heterossexuais normativas, há também a preocupação com as relações entre pessoas do mesmo sexo, que pouco têm atenção na saúde pública. Segundo a professora e especialista em saúde coletiva da UFMG, Mariana Felisbino, o uso do preservativo beneficiou muito os homens, no entanto, o sexo entre mulheres é mais fragilizado, principalmente porque não existe um preservativo específico para esse público: “Não existe uma camisinha comercializada para o sexo entre mulheres. Muitas delas, para se protegerem de eventuais ISTs, fazem adaptações para proteger a vulva ou até mesmo cortam a camisinha”, explica. Ainda segundo a pesquisadora, há mais estudos sobre sexo entre homens do que entre as mulheres, o que aponta a desigualdade de gênero inclusive no âmbito acadêmico.
Diante da invisibilização da saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais com vulva, a ilustradora Nicolle Sartor, de 21 anos, criou o ‘Velcro Seguro – Guia de saúde sexual para mulheres lésbicas e bissexuais com vulva’. Fruto de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), a cartilha de Sartor aborda quais são as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) transmitidas no sexo entre mulheres, quais os métodos de sexo seguro existentes e os exames recomendados como prevenção, entre outros asssuntos relacionados.
A melhor forma de combater as ISTs é a prevenção. Segundo a médica da Divisão de Saúde (DSA) da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Tauana Almeida, o ideal é manter o diálogo aberto, e se os parceiros envolvidos pensam em abrir mão do preservativo, é fundamental que os exames médicos estejam atualizados. Além disso, na clínica, “eu percebo que as pessoas não dialogam entre si, principalmente, quando não há algum rótulo estabelecido. Se é algum ‘lance’, algo casual entre as pessoas, elas optam por não usar camisinha e nisso podem contrair uma IST. É preciso usar preservativo, realizar as testagens para as ISTs e também, a qualquer sintoma fora do comum, procurar ajuda médica”, alerta.
Almeida ressalta, portanto, a importância da prevenção combinada, isto é, uma estratégia de uso simultâneo de diferentes abordagens de prevenção (biomédica, comportamental e estrutural) aplicadas em múltiplos níveis (individual, nas parcerias/relacionamentos, comunitário, social). No caso da prevenção combinada das ISTs, considera-se o uso da camisinha externa (masculina) ou interna (feminina), do gel lubrificante, do diagnóstico e o tratamento das infecções sexualmente transmissíveis (IST), além da testagem para HIV, sífilis e hepatites virais B e C, profilaxias pré e pós-exposição ao HIV (PrEP e PEP, respectivamente), imunização para HPV e hepatite B, prevenção da transmissão vertical de HIV, sífilis e hepatite B, tratamento antirretroviral (Tarv) para todas as pessoas que vivem com HIV/Aids (PVHA) e redução de danos.
Mandala da Prevenção Combinada | Reprodução: Instituto Pró-Diversidade
Além disso, o fortalecimento da autonomia e do poder decisório das mulheres é fundamental para o controle das ISTs. A existência de espaços abertos para diálogos, para além de uma abordagem clínica, é imprescindível. Na UFMG, a professora Marina Felisbino lidera o projeto de extensão Geca – Gênero, Empoderamento, Cuidado e Autonomia. Realizado na Escola de Enfermagem da Universidade, o projeto busca construir um trabalho mais humano de assistência à mulher, não voltado apenas a uma visão reducionista do corpo feminino como reprodutor. “A premissa do projeto é que essa mulher se empodere do seu corpo e de suas práticas, seja no campo da prevenção de IST ou da contracepção. Trabalhamos com serviços e também consultas focadas para que a mulher seja protagonista do seu cuidado, mas também foque no planejamento familiar, também com o acolhimento aos parceiros”, explica. Segundo a professora, a maioria do público atendido são mulheres adolescentes, com dúvidas e angústias acerca de métodos de contracepção e, principalmente, com queixas de que o parceiro tem relutância em usar o preservativo.
Sofia (nome fictício) tinha 25 anos de idade quando teve o diagnóstico de HPV. Na época, estava cursando as disciplinas do ciclo básico de sua graduação na universidade. O tratamento para o HPV durou aproximadamente três anos e até hoje, aos 27 anos, ela faz acompanhamento ginecológico e também o exame papanicolau.
“No primeiro momento, eu senti um aspecto áspero na região da genitália. Procurei um médico, mas ele não deu o diagnóstico de cara. Quando eu descobri foi muito impactante e eu fiquei muito preocupada, porque não sabia como ia proceder para conseguir melhorar, não sabia se tinha cura ou não. Essa falta de informações me fez ficar muito apreensiva. O método de tratamento foi a cauterização, feita com ácido, durante meses. Foram meses bem difíceis, porque tive que buscar informações por mim mesma, procurei vários profissionais da ginecologia para ver se a doença me traria alguma consequência futura. O processo em si foi muito solitário, não pude contar com minha família e passei por muitas dificuldades financeiras.
Quando eu descobri, cheguei a relatar para o meu parceiro daquela época que também foi diagnosticado com o HPV. Chegamos a ter uma conversa de apoio, mas depois disso, ele foi tratar as infecções dele e foi se afastando, não me dando apoio. Eu me recordo que meu estado emocional estava bem ruim e, nessas horas, é importante as mulheres se ajudarem. A minha amiga, era amiga em comum inclusive desse cara com quem eu ficava, foi quem me deu apoio emocional, mas você acaba tendo que lidar sozinha. Eu lembro que estava realizando o tratamento e as marcações eram presenciais. Eu chegava a acordar 4 horas da manhã para garantir minha consulta na unidade de saúde e dar prosseguimento ao tratamento. Nas vezes em que eu não conseguia, precisava pagar o médico particular com a bolsa que eu ganhava no estágio. Tudo foi difícil, porque eu tive que lidar com o que eu conhecia na época.
Uma coisa que me marcou muito foi que eu estava no ciclo básico da graduação e fazia uma disciplina muito importante. Lembro de estar estudando e chorando ao mesmo tempo. Até hoje, tenho o material dos resumos com as marcas das lágrimas nos papéis […].
Sobre o HPV, a imunidade influencia muito. Se a minha imunidade estava baixa, as verrugas voltavam e eu tinha que voltar com o tratamento. Depois que isso aconteceu, eu passei a fazer os exames de detecção de IST com muito mais frequência, mas o HPV não possui teste para detectar se tem ou não. Por isso, quanto mais a gente se cuidar e se informar, melhor.”