Especialistas salientam que armar as escolas não é a solução e que refletir sobre a formação cidadã é primeiro passo.
-24 de outubro de 2024
Especialistas salientam que armar as escolas não é a solução e que refletir sobre a formação cidadã é primeiro passo.
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O ataque à creche Cantinho Bom Pastor, uma unidade de ensino privado, na cidade de Blumenau (SC), chocou o país no início de abril: um homem de 25 anos tirou a vida de quatro crianças. Manchetes circularam pelo Brasil e sentimentos de tristeza suscitaram nas redes sociais em formas de hashtags como #lutoporblumenau e #lutopelascriancas. Embora tenha sido tratado na mídia como crime isolado, o ataque à creche em questão foi mais um episódio que faz parte de um aumento preocupante de crimes semelhantes no Brasil. Segundo estudos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), de 2022 até o presente ano, foram realizados 24 ataques violentos em escolas no país. Esses números demonstram como a discussão da segurança nas escolas é necessária, além de planejar como agir daqui para frente.
Para Juliana Ladeira, psicóloga e mestranda em educação na Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) que estuda a psicologia da adolescência, é fundamental ter um olhar social para a questão da violência, principalmente no contexto dos adolescentes. Ela destaca que essa faixa etária depende muito do amadurecimento emocional do indivíduo, quando ocorrem diversas mudanças. “Muitos autores utilizam o termo juventudes, com ênfase no plural, por causa da heterogeneidade, das mudanças intensas e complexas que ocorrem na fase da adolescência. Não é algo singular. Não é apenas uma adolescência, são as adolescências”, explica.
Os estudos da sociologia discorrem muito sobre o contato do indivíduo com a sociedade que resulta em experiências fundamentais para a construção de sua identidade, de seus valores, princípios e crenças. As relações familiares e escolares dão o tom desses primeiros contatos, a partir dos quais os indivíduos assimilam sentimentos, regras e comportamentos. Na escola, a relação vai se transformando em função do encontro entre diferenças étnico-raciais, de orientação sexual e de classe entre os jovens. Segundo Ladeira, essas diferenças entre os adolescentes também podem trazer à tona desigualdades e resultar em problemas como o bullying. Conforme explica a psicóloga, “há, em qualquer relacionamento social, dois tipos de violências: aquelas que são visíveis e as invisíveis. A primeira é prática, como uma agressão física, interligada com a criminalidade. Já as violências invisíveis, como o bullying, não são notadas e são recorrentes em razão das diferenças entre os adolescentes. Logo, um comportamento que deveria ser harmonioso torna-se conflituoso”.
A profissional ainda ressalta que é difícil apontar uma causa, analisar o todo, o ambiente escolar pode ser um bom começo, principalmente porque “o adolescente pode se sentir pequeno e oprimido frente às desigualdades que sofre e muitas vezes, sem a escuta dos pais, dos responsáveis ou da própria escola”. Nesse sentido, explica, “elevar os muros das escolas, colocar policiamento e armamento nesses ambientes não seria suficiente. A motivação [da violência nas escolas] pode ser diversa, não é só uma questão individual, mas sim uma questão social, escolar, familiar e podendo até ser psicológica e emocional”.
Nos últimos anos, principalmente durante o governo de Jair Messias Bolsonaro, presenciou-se um aumento considerável de discursos de ódio propagados pela internet. De acordo com dados da Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da Safernet, houve um aumento de 67,7% em 2022 em relação a 2021 de suspeitas de crimes envolvendo discurso de ódio pela internet. Entre os crimes, o que mais cresceu foi a xenofobia, que é o preconceito, a intolerância ou a violência contra estrangeiros, ou pessoas de uma determinada nacionalidade. Logo em seguida, a intolerância religiosa, com crescimento de 456% no período analisado, seguida pela misoginia ou opressão às mulheres, que teve um aumento de 251% entre 2021 e 2022. Para Arthur Meucci, filósofo educacional e psicanalista, há uma correlação entre a ascensão de discursos de ódio e a vulnerabilidade em seus diversos aspectos com a violência que tem ocorrido nas escolas nos últimos anos. “É claro que não podemos generalizar, pois deve existir uma combinação de fatores, uma química entre eles. Mas aquele jovem que esteja atravessando dificuldades econômicas e emocionais, ou excluído socialmente, está vulnerável a esses discursos que funcionam como forma de escape”, explica.
Segundo o filósofo, a premissa desses discursos está na ideia de negação do outro e do diferente. O movimento do neonazismo, por exemplo, é um desses discursos. Ele escora-se nos ideais nazistas, com uma nova aparência em alguns casos, mas que usa esses ideais para promover o ódio contra diferentes grupos da sociedade, tais como negros, judeus, católicos, mulheres feministas, anarquistas, comunistas entre outras minorias. “A ideia autoritária e violenta é muito sedutora. Os discursos neonazistas e neofascistas explicam o mundo e te colocam como vítima, como bode expiatório. Essas ideologias eximem o seguidor da responsabilidade, sendo a ‘culpa’ sempre do judeu, do preto cotista, dos homossexuais, dos comunistas”, enfatiza Meucci.
No âmbito escolar, Meucci aponta uma fragilidade do sistema educacional brasileiro: a ausência da figura do orientador educacional, profissional com dupla titulação (psicologia e pedagogia) capaz de mediar conflitos, identificar estudantes em situação de vulnerabilidade ou sofrimento. A orientação educacional é fundamental para conter o bullying, pois atua em conjunto, em parceria com a pedagogia e com as famílias, para promover o bem-estar do estudante e contribuir para erradicar a violência neste ambiente. O aumento de debates filosóficos nas instituições de ensino, principalmente em relação às temáticas sobre ética, dignidade, inclusão e empatia, é o que dá subsídios aos indivíduos para evitar a propagação de discursos autoritários e de natureza de extrema-direita, segundo destaca o filósofo.
Além disso, conforme ressalta, as redes sociais digitais são estímulos para a propagação de discursos de ódio que facilmente podem ser consumidos pelos jovens e adolescentes. Segundo dados de pesquisa do grupo Globo “Sintonia com a Sociedade”, realizada com internautas de 16 anos ou mais, das classes A, B e C, entre 29 de janeiro e 2 de fevereiro de 2021, cerca de 75% dos jovens entrevistados presenciaram ataques/ameaças em redes sociais a outras pessoas devido à discriminação. O Facebook foi a principal plataforma na qual os internautas encontraram ataques e ameaças desse tipo, seguida pelo WhatsApp e pelo Instagram. “É como a pólvora e o palito de fósforo, ambos isolados não fazem nada, mas em contato eles explodem. Da mesma forma, esses terríveis ataques às escolas. Esses indivíduos vulneráveis com acesso aos discursos de ódio nas redes sociais, podem realmente dar match”, finaliza Arthur Meucci.
Segundo Luciene Rinaldi Colli, professora de Direito Penal, Execução Penal e Direitos da Criança e do Adolescente na Universidade Federal de Viçosa (UFV), “não existe uma legislação específica de segurança nas escolas”. Há leis coordenadas como a Lei Antibullying e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para que não haja esse tipo de violência nas escolas”. A temática, no entanto, é nova para o direito brasileiro, como afirma a professora. O acesso à educação no Brasil é um Direito que está presente nos marcos legais desde a formação do Estado nacional independente. O artigo 205 da Constituição Federal do Brasil, coloca a educação como “direito de todos e dever do Estado e da família” que deve ser “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Além disso, o artigo 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente, define como “dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”.
Para Colli, a violência no ambiente escolar e os problemas presenciados recentemente estão estritamente ligados às fragilidades socioeconômicas que envolvem indivíduos pouco assistidos pelo poder público que acaba por negligenciar os direitos tão explícitos à educação. “No Direito, os jovens e adolescentes que praticam atos infracionais análogos ao crime, no âmbito das escolas, também são credores da atenção do Estado que pode ter falhado. Seja porque a família é carente e não teve acesso à educação, a políticas públicas, à moradia ou à alimentação. Um Estado que falhou, sobretudo, em não realizar o acompanhamento dessa criança ou adolescente na escola e por não identificar as más tendências”, complementa.
Ainda segundo ela, em virtude do advento da tecnologia, das redes sociais digitais e seus aplicativos de mensagens, as relações sociais estão cada vez mais distantes e com o passar do tempo tornam-se frias e ausentes de afeto. A professora relembra que se antes esses ataques e violências no ambiente escolar eram esporádicos, hoje retomam a discussão, principalmente para análise do ensino-aprendizagem e como estão as relações professor-aluno.
Apesar da existência da Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional que organiza todo o sistema educacional brasileiro e, também da Lei Antibullying, que prevê a inclusão de conteúdos e práticas para combater a violência, ainda permeia a ausência da conscientização e conhecimento desses instrumentos por parte da sociedade. Na ótica de Paulo Freire, educador e filósofo brasileiro, a educação propicia uma prática para a liberdade enquanto as pessoas seriam agentes que operam e transformam o mundo. Nesse sentido, a professora Luciene Colli complementa que é preciso uma educação transformadora, voltada para a paz e ressalta que a saída não é o policiamento. “A escola não é lugar de polícia. A conscientização de uma educação para a paz precisa estar presente independente do conteúdo e da disciplina. Sabendo da existência das diversas violências, sejam elas patrimoniais, sexuais, psicológicas, de gênero e classe social, há o dever de coibir e denunciar a violência que possa acontecer”, conta.
Em Viçosa, a Polícia Civil elaborou uma cartilha chamada “Escola Segura” que tem como objetivo alertar sobre notícias falsas que são compartilhadas nas redes sociais e também como denunciar conteúdos relacionados a ameaças às escolas ou pessoas em atitudes suspeitas.
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Adorei!