O Andamento do Projeto de Lei pode limitar a ocupação das terras pelos povos no Brasil. Terão direito apenas aqueles que já estavam ocupando até 5 de outubro de 1988, colocando sob ameaça 1.393 territórios indígenas
-24 de outubro de 2024
O Andamento do Projeto de Lei pode limitar a ocupação das terras pelos povos no Brasil. Terão direito apenas aqueles que já estavam ocupando até 5 de outubro de 1988, colocando sob ameaça 1.393 territórios indígenas
Por
Taynara Pena
O “Marco Temporal” é um conceito jurídico que, no caso, se refere à definição de uma data limite para a demarcação de terras indígenas no Brasil. Ele estabelece que apenas as terras ocupadas por comunidades indígenas até a data desse marco têm direito à demarcação. Neste caso, os povos indígenas teriam direito a ocupar apenas as terras que estavam sob sua posse ou em disputa até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal.
Apesar de ser um tema em discussão atualmente, o Projeto de Lei 490/07 surgiu em 2007. Apresentado pelo deputado Homero Pereira (PSD), o PL, altera a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio. Hoje, a demarcação de terras indígenas segue critérios estabelecidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Em 2007, quando o projeto começou a ser tramitado, essa decisão pretendia transferir a competência de demarcação do Poder Executivo para o Poder Legislativo, ou seja, para a Câmara dos Deputados e para o Senado.
Em maio de 2023, o Projeto de Lei foi aprovado na Câmara dos Deputados, na forma de um texto substitutivo do relator, o deputado Arthur Oliveira Maia (União). Foram 283 votos a favor, 155 contra e uma abstenção.
Consoante o texto, além de prever a demarcação apenas de terras já ocupadas por indígenas até promulgação da Constituição de 1988, será necessário também comprovar que as terras ocupadas eram habitadas de forma permanente, utilizadas para atividades produtivas e essenciais para a preservação dos recursos ambientais, bem como para a reprodução física e cultural dos indígenas.
Em setembro de 2023, o Plenário do Senado também aprovou o projeto (PL 2.903/2023), com 43 votos a favor e 21 contrários. Logo após, o presidente Lula sancionou o projeto aprovado pelo Congresso como Lei 14.701 de 2023, com vetos aos principais pontos.
Em 14 de dezembro, o Congresso derrubou alguns vetos e oficializou as emendas propostas pelos parlamentares, incluindo novamente na lei a condição de que o dia 5 de outubro seja utilizado como referência para a demarcação de terras indígenas.
No Supremo Tribunal Federal (STF), o Marco Temporal chegou por meio de um caso específico, o Recurso Extraordinário (RE) 1017365. Tratou-se de uma disputa em torno da terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, em Santa Catarina, em que o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), pedia a reintegração de posse das terras habitadas por esses povos originários.
Em setembro do ano passado, o STF decidiu invalidar a tese por 9 votos a 2. Votaram contra o marco temporal: Fachin (relator), Moraes, Zanin, Barroso, Toffoli, Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber. Votaram a favor: André Mendonça e Nunes Marques. A decisão tomada a partir deste caso terá repercussão geral, ou seja, valerá para todos os processos similares posteriormente.
Após a aprovação no congresso houveram partidos que contestaram declarando que houve inconstitucionalidade, enquanto outros discordam. Assim, a tese volta à corte do Supremo neste ano de 2024, para ser discutida em três ações diferentes: duas contra e uma a favor.
Os partidos PT, PCdoB e PV protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). Os partidos querem que os vetos presidenciais sejam considerados pelo Congresso, retirando os trechos inconstitucionais.
Já a Adin protocolada por PSOL, Rede e o movimento indígena, representado pela Apib, pedem a anulação completa da lei. Do lado oposto, PL, PP e Republicanos pedem a validação do Marco Temporal. A discussão no STF sobre o assunto deve seguir ao longo do ano.
O assunto repercutiu também na Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com informações do site oficial da ONU, o relator especial da organização sobre Direitos dos Povos Indígenas, José Francisco Calí Tzay, trouxe um alerta para o perigo iminente que a tese representa aos territórios indígenas nacionais. Calí Tzay ressalta que o Marco Temporal coloca sob ameaça direta 1.393 terras indígenas.
Outros estudiosos da causa indígena também seguem o mesmo viés. Segundo a professora e coordenadora do curso de História da Universidade Estadual do Piauí, também especialista em história indígena, Tatiana de Oliveira, o Marco Temporal é um grande ataque aos direitos tradicionais dos povos indígenas.
“É um escárnio esse projeto. Além de ser anticonstitucional, ele é um golpe. Como a Célia Xakriabá deputada federal diz, é um genocídio legislado. Não conseguiram fazer e concretizar o genocídio físico porque houve resistência e agora estão pensando em fazer um genocídio legislado.”
Tatiana, também alerta para a inconstitucionalidade do projeto de lei. A especialista, aponta que a PL 490, fere os Artigos 231 e 232 do Capítulo 8 da Constituição, que dizem o seguinte:
Art. 231. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
Art. 232. “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”
Assim, para a historiadora, a Constituição é clara: “É direito dos povos indígenas os territórios que eles ocupam tradicionalmente”.
Apesar da tentativa de um apagamento histórico, a luta e a resistência indígena persistem em todos os cantos de nosso país e tem ganhado espaço ao longo dos anos, especialmente com a internet. Em conformidade com os dados preliminares do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no país, em 2022, até o momento o número total de indígenas no Brasil é de 1.652.876 pessoas. O resultado indica que houve um aumento de 54,26%, em comparação com último levantamento feito em 2010, refletindo o crescimento da autodeclaração indígena. Em Viçosa, Minas Gerais, podemos ver de perto esse fato pela linhagem Puri.
O Movimento Indígena de Retomada Puri Uxo Txori – Zona da Mata-MG, tem como principal objetivo o acolhimento e o fortalecimento da identidade coletiva para retomada da etnia na região. A ideia da reconstituição histórica do povo Puri, surgiu em um contexto pandêmico visando o direito à inclusão de indígenas categorizados como não-aldeados no grupo prioritário de imunização.
Ações de manifestação articulada pelos Puris em Viçosa | Foto: Taynara Pena
Hoje os Puris, além de buscarem o reconhecimento de seus direitos, também lutam contra o Marco Temporal e teses semelhantes. Uma das lideranças do movimento em Viçosa, Helenice Puri, reforça a importância em preservar a relação dos povos indígenas com a natureza.
“Nós temos muito para oferecer pra humanidade, a nossa cultura é uma cultura que tem que ser preservada. Para a gente, a terra é sagrada, nós temos uma forma diferente de se relacionar com a terra, com a água. Então a nossa cultura precisa ser preservada como um achado para a humanidade. Preservar o nosso território é preservar a cultura dos povos.”
A relação dos povos originários com a natureza, além de afetiva, também se expressa na preservação do meio ambiente, o que pode ser comprovado por meio de dados. Conforme o relatório produzido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 29% do território ao redor das Terras Indígenas (TIs) está desmatado, contra apenas 2% dentro de suas terras.
O que os Puris e todos os indígenas pedem neste momento é que sejam cumpridos seus direitos, principalmente em relação à garantia da demarcação territorial. “É uma luta de não ao Marco Temporal e pela demarcação dos territórios indígenas”, relembra a ativista.
Helenice Puri canta cântico de sua autoria e homenageia seus ancestrais | Reprodução: acervo pessoal
Após a promulgação da Carta Magna em 1988, a Assembleia Nacional Constituinte determinou um prazo de cinco anos para demarcar todas as terras indígenas do Brasil, porém até hoje esse objetivo não foi cumprido.