Se o riso fere, perde a graça

Influência de discursos de ódio no humor reaquece debate sobre limites da liberdade de expressão em shows de stand up que se apropriam da piada para ferir minorias

No stand up – “comédia em pé”, na tradução literal –, como em todas as derivações da comédia, o objetivo final é o riso. Nesse subgênero, baseado no direito à liberdade de expressão, os profissionais apresentam seus textos utilizando temáticas do cotidiano que, geralmente, envolvem a plateia, provocando o público à risada. Foi fazendo “comédia em pé” e sozinhos no palco que grandes nomes como Chico Anysio, Jô Soares e Dercy Gonçalves começaram a trajetória do stand up no país na década de 1960, formato que surgiu nos Estados Unidos no final do século XIX. Entretanto, foi a partir dos anos 2000 que as casas de shows de stand up se popularizaram no país, com apresentações de Diogo Portugal, Fábio Porchat, Tatá Werneck, Léo Lins entre outros. 

Para o exercício dessa atividade, a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento é indispensável e garantida por lei. Conforme a Constituição Federal em seu Artigo 220, a “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição: § 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. 

Em contrapartida, é possível observar casos no país em que a liberdade de expressão é utilizada como pretexto para a promoção de discurso de ódio contra minorias, em que temas preconceituosos como racismo, machismo, lgbtfobia e gordofobia passam a compor a narrativa de espetáculos de stand up

Em decorrência disso e considerando a lei, o Ministério Público, por meio do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) determinou, em maio de 2023, que fosse excluído um vídeo do canal do Youtube de Léo Lins – humorista, escritor, roteirista e ator brasileiro, que ficou conhecido por fazer parte do programa The Noite com Danilo Gentilli, no SBT, até julho de 2022. O humorista dirige ofensas a minorias como premissa em seus shows de stand up e descaracteriza, assim, a real função do humor, que é a descontração.

Mas Léo Lins não foi o primeiro caso em que o discurso de ódio se veste de piada e fere minorias. Em 2011, Rafinha Bastos foi condenado pela Justiça do Rio Grande do Sul a pagar R$150 mil de indenização à cantora Wanessa Camargo, por ter feito uma piada sobre sua gravidez. O ex-colega de trabalho de Léo Lins, Danilo Gentilli, também foi condenado a pagar R$200 mil por ofensas à deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), em 2016. No ano seguinte, ele foi condenado pela Justiça Federal de São Paulo a seis meses e 28 dias de prisão em regime semiaberto por injúria contra a mesma deputada, depois de ter rasgado e colocado na cueca uma notificação extrajudicial enviada por Rosário.

PARA QUE A HISTÓRIA NÃO SE REPITA

Tatá Werneck, apresentadora e comediante que acumula mais de 50 milhões de seguidores nas redes sociais digitais, passou a rever sua postura após ser transfóbica em uma piada no programa Lady Night, exibido no canal Multishow. Sabendo de sua responsabilidade e alcance, a humorista contratou a comunicadora e mestranda em educação, Ana Flor, que é travesti, para ser consultora e revisar os episódios que são transmitidos. 

A comunicadora, que trabalha ao lado de Tatá há duas temporadas, defende que compreender e não endossar discursos de ódio é urgente. “Durante muito tempo, o humor foi compreendido como um lugar repleto de violências. Entender a importância de romper com essa visão é fundamental. É exatamente isso que estamos fazendo”, declarou em seu X – antigo Twitter.

O comediante de stand up e estudante de Comunicação Social na Universidade Federal de Viçosa (UFV), Pedro Milagres, mais conhecido por seu nome artístico Pedro Didico, entende o papel da liberdade de expressão no humor, principalmente quando se trata de assuntos como política, mas relata que é preciso ter delicadeza ao abordar temas que envolvem minorias. Para ele, a mudança de narrativa é fundamental nesses contextos.

“Quando o tema é sobre alguma minoria, quando envolve algum preconceito, o mais legal e correto a se fazer é não ‘bater’ naquele que é o agredido. Não fazer piada com aquele que é o agredido. Faz piada com o agressor. É muito mais impactante e gera muito mais pensamento crítico sobre a sociedade e tudo o que está rolando no mundo”, declarou.

Didico, que atua no formato desde 2019, afirma que deixou de consumir o conteúdo de Léo Lins quando percebeu que discursos ofensivos e piadas polêmicas se tornaram a base de suas apresentações, sobretudo, após a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2018. Para o barbacenense, ações como a retirada de conteúdo ofensivo não representam uma ameaça e censura à classe humorística, mas sim “um passo a mais, evolutivo, para o stand up parar de ter esses conteúdos de discurso de ódio, de zombar minorias, que não faz sentido em pleno 2023”, concluiu.

Casos como o de Léo Lins, Danilo Gentilli e Rafinha Bastos reforçam que ações diretas são fundamentais quando se trata da influência de discursos de ódio no humor, garantindo a proteção de grupos e indivíduos historicamente marginalizados e invisibilizados na sociedade brasileira.

O documentário “O Riso dos Outros”, disponível no YouTube, foi produzido pela TV Câmara, com direção e roteiro de Pedro Arantes, para refletir sobre o limite tênue entre a comédia e a ofensa. Publicada em 2012, a produção analisa o stand up sob a ótica de personalidades como Nany People, Laerte, Rafinha Bastos e Jean Wyllys, entre outros.
Reprodução: TV Câmara

O QUE DIZ A LEI?

A mestre em Direito, Heloísa Melino, juntamente com a doutora em Linguística, Lúcia Freitas, publicaram um artigo em que analisam os limites entre liberdade de expressão, discurso de ódio e violência simbólica. De acordo com as pesquisadoras, esse tipo de discurso deve ser combatido, principalmente, porque é dificilmente reconhecido no contexto do stand up, já que a ideologia aparece na narrativa em tom de descontração e não de incitação.  

“O paradigma dogmático de direito é, notadamente, insuficiente para a solução dos conflitos existentes em sociedade, há que se olhar a realidade e ajustar a práxis jurídica e a letra da lei para que lhe sirvam e as relações interpessoais sejam reguladas de forma a minimizar as assimetrias de poder e as desigualdades sociais”, explicam as pesquisadoras. 

Ainda, de acordo com Melino e Freitas, o discurso reproduzido e endossado pela comédia de stand up gera reflexos na sociedade e, por isso, “como toda forma de expressão este gênero discursivo também precisa estar dentro de limites que respeitem os princípios constitucionais de dignidade e igualdade”, afirmam.

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