Copa do Mundo de Futebol Feminino: de espetáculo de circo a espetáculo mundial

No início do século passado, as mulheres foram proibidas, por lei, de jogar futebol. Hoje, a modalidade, oficial, já se apresenta como potência econômica no mundo do esporte

A contagem regressiva para a Copa Do Mundo de Futebol Feminino está a todo vapor e, com ela, a ansiedade para um dos eventos mais esperados do ano. A expectativa não é aleatória: o futebol feminino tem passado por uma crescente que se confirmou durante o Mundial disputado na França em 2019, com recordes e mitos envolvendo o futebol praticado por mulheres quebrados: foi a primeira copa feminina com cobertura completa dos jogos em TV aberta e as partidas bateram altos índices de audiência.

Desde seu surgimento no início do século passado, o formato da competição feminina tem passado por muitas mudanças que também impactaram na percepção em relação ao esporte praticado pelas mulheres. Se naqueles tempos, as mulheres jogando bola faziam parte de atrações de circo, hoje o futebol feminino se oficializou como modalidade esportiva e tem se confirmado, cada vez mais, como potência econômica. As conquistas de espaço e visibilidade são resultados de uma intensa e persistente luta das mulheres por sua inserção no esporte desde meados de 1921, quando foi feito o primeiro registro oficial de uma partida disputada por mulheres: Catarinenses contra as Tremembeenses, na cidade de São Paulo. Na época, o futebol foi criticado por ser muito bruto e especialmente ao ser praticado por mulheres, o que levou à proibição do futebol feminino, por lei, em 1941.

Copa é resultado da luta das mulheres por igualdade no esporte

A cada quatro anos, desde 1970, os amantes do futebol praticado por mulheres têm a oportunidade de ver as melhores atletas do mundo disputando por seus respectivos países. O sucesso da Copa do Mundo de Futebol Feminino é resultado de um longo processo de busca por igualdade e reconhecimento, de uma luta travada contra discursos de que o futebol praticado por mulheres é ‘’feio’’ ou ‘’ruim’’. Em julho de 1970, aconteceu a primeira versão do que se tornaria a Copa do Mundo de Futebol Feminino, a Martini Rosso Cup. O torneio foi realizado na Itália sem a participação da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e contou com a participação de sete países (México, Inglaterra, Dinamarca, Itália, Alemanha Ocidental, Áustria e Suíça), tendo a Dinamarca como vencedora. Apenas em 1988 a Fifa realizou um evento na China para analisar a viabilidade de uma copa entre mulheres, do qual 12 países (China, Canadá, Holanda, Costa do Marfim, Brasil, Noruega, Austrália, Tailândia, Suécia, Estados Unidos, Tchecoslováquia e Japão) manifestaram interesse em fazer parte. Assim, a primeira copa encabeçada pela Fifa foi realizada na China, em 1991, com as 12 seleções participantes e a dos Estados Unidos se sagrando campeã. 

A segunda edição do Mundial aconteceria na Bulgária, em 1995, mas acabou sendo sediada pela Suécia, disputada pelos mesmos 12 países, quando a Noruega foi campeã. Nesses dois primeiros mundiais, o Brasil foi eliminado na fase de grupos. Já em 1999, a copa, que teve 16 participantes, foi realizada nos Estados Unidos (EUA). Naquela oportunidade, a seleção canarinho, pela primeira vez, conseguiu um destaque, especialmente com a artilheira Sissi. Ainda assim, a seleção do país-sede conquistou seu segundo título em 1999. Quatro anos depois, em 2003, o mundial foi novamente disputado em terras estadunidenses e a Alemanha levou a taça para casa. A seleção brasileira, ainda que tenha iniciado com uma boa campanha, foi eliminada nas quartas de final, mas marcou, naquela edição, a primeira aparição da futura melhor do mundo, a Marta. 

A edição seguinte, a de 2007, marcou uma importante conquista para o futebol feminino: foi a primeira vez em que uma premiação foi paga pela Fifa às seleções participantes. Mais uma vez tendo a China como país-sede, aquela foi, até então, a melhor participação da seleção brasileira em copas, que traçou uma jornada brilhante só interrompida pela Alemanha na final. Além da conquista do vice-campeonato, a rainha Marta se destacou tornando-se a artilheira e melhor jogadora da competição. A responsável por sediar a Copa do Mundo de 2011 foi a Alemanha, duas vezes campeã do torneio. Em 2011, o Brasil foi eliminado pelos Estados Unidos ainda nas quartas de finais, em disputa por pênaltis. Naquele ano, a japonesa Homare Sawa se destacou como artilheira e melhor jogadora da competição, também sendo considerada a melhor do Mundo. 

O mundial seguinte, em 2015, foi realizado no Canadá e marcou a estreia do formato com 24 equipes e a tecnologia que definia ou não o gol: o chip na bola. A seleção brasileira teve um bom desempenho, mas foi eliminada pela Austrália nas oitavas de finais. Com a grande atuação da artilheira Carli Lloyd – juntamente com Célia Sasic, da seleção alemã – os EUA conquistaram seu terceiro título. A copa seguinte, realizada na França em 2019, marcou a virada de chave no futebol feminino, rendendo muitos recordes, entre eles: a maior goleada da história das copas do mundo feminina (13 a 0 dos EUA contra a Tailândia) e; a consolidação de Marta como maior artilheira das copas femininas ao alcançar a marca de 17 gols. Essa também foi a versão da competição que mais recebeu visibilidade e audiência. O Brasil foi eliminado precocemente na competição, nas oitavas de final, ao ser superado pela França por 2 a 1, ao passo em que Megan Rapinoe e Alex Morgan guiaram a seleção inglesa para a conquista do título.

Premiações maiores, mas ainda inferiores às do futebol masculino

Este ano, o campeonato mundial de clubes de futebol entre mulheres, o evento mais aguardado da modalidade, será disputado entre os dias 20 de julho e 20 de agosto. A nona edição do torneio será a primeira realizada no Hemisfério Sul, com a sede sendo dividida entre a Austrália e a Nova Zelândia. Essa também será a edição mais tardia deste formato da Copa do Mundo, já que houve um aumento de 24 para 32 seleções participantes e, com isso, a necessidade de mais tempo para que as 32 seleções participantes fossem definidas. O aumento se deve ao intuito da Fifa de igualar o formato feminino ao torneio masculino vigente desde 1998, justificado pelo aumento do nível dos jogos registrados nas duas edições anteriores.

No entanto, a justificativa de tentar igualar os torneios não pode ser confirmada ao se considerar a premiação da competição. Apesar da evolução no investimento do torneio que contará com uma premiação de US$ 152 milhões, o valor, três vezes maior que o montante pago em 2019 na França e dez vezes maior que o entregue em 2015, no Canadá, ainda é significativamente inferior ao investido no futebol masculino. O torneio masculino, realizado no Catar, no ano passado, contou com o investimento de US$ 440 milhões, quase o triplo do que será pago para as seleções femininas neste ano.

Para a disputa da taça, o torneio foi dividido em oito grupos com quatro seleções cada e as duas melhores de cada chave avançam para as oitavas de final. Confira a divisão por grupo:

  • Grupo A: Filipinas, Noruega, Nova Zelândia, Suíça.
  • Grupo B: Austrália, Canadá, Irlanda, Nigéria.
  • Grupo C: Costa Rica, Espanha, Japão, Zâmbia.
  • Grupo D: China, Dinamarca, Haiti, Inglaterra.
  • Grupo E: Estados Unidos, Holanda, Portugal, Vietnã.
  • Grupo F: Brasil, França, Jamaica, Panamá.
  • Grupo G: Argentina, Itália, Suécia, África do Sul.
  • Grupo H: Alemanha, Colômbia, Coreia do Sul, Marrocos.

As equipes se enfrentarão em dez estádios localizados em cinco cidades australianas (Sydney, Melbourne, Perth, Brisbane e Adelaide) e em quatro neozelandesas (Auckland, Wellington, Dunedin e Hamilton). A transmissão, no Brasil, será feita pela Rede Globo pela segunda vez consecutiva, em TV aberta. O SporTV será o responsável pela transmissão em canal fechado e a Cazé TV, no youtube, cobrirá uma partida por dia no decorrer da competição.

A seleção brasileira busca a taça Sob comando da técnica sueca Pia Sundhage, as meninas da seleção brasileira se preparam com o objetivo de conquistar, pela primeira vez, o título mundial. Depois de ficar no ‘’quase’’ em 2007, quando foi para a final mas acabou como vice-campeã ao perder para a Alemanha por 2 a 0, a seleção brasileira passou por profundas reformulações e chega para o Mundial como campeã da Copa América. Como parte dos últimos preparativos para o torneio, a seleção canarinho disputou a SheBelieves Cup, quando foi superada pelas potências Canadá (0x2) e Estados Unidos (1×0); enfrentou também a Inglaterra na Finalíssima, onde acabou superada nos pênaltis pelo placar de 4 a 2 após empate de 1 a 1 no tempo regulamentar.

Meninas da seleção comemorando a vitória por 2 a 1 contra a Alemanha
Reprodução: Seleção Brasileira Feminina (Instagram – Thaís Magalhães @maga.thais)

O futebol feminino caminha, um passo de cada vez

No final do século XIX, partidas de futebol entre mulheres eram atrações de shows de circo, ao passo em que homens de classe alta já participavam de campeonatos com torcida.

Em 1941, durante o governo de Getúlio Vargas, foi criado o Conselho Nacional Desportivo (CND ), decretando, por meio de lei, a proibição da ‘’prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina’’. Apesar de não citar especificamente o futebol, a modalidade estava claramente considerada. Em 1965, com o governo militar, a proibição é reforçada no Art.54 com mais detalhes: ‘’Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país’’. O fim da proibição só veio em 1970, mas o estrago já estava feito. Sem investimentos e apoio, as mulheres do futebol brasileiro enfrentaram a resistência de clubes e federações e só viram o cenário começar a

mudar em 1983, com a regulamentação do futebol para mulheres e o surgimento dos primeiros clubes profissionais.

Desde a regulamentação, o futebol feminino enfrentou longa jornada na busca por igualdade. Para Camila Galimberti Gozzi, gestora e consultora esportiva e especialista em futebol feminino, é preciso sensibilidade ao comparar o futebol feminino e masculino: ‘’Eu parto do princípio de que a base de comparação entre futebol feminino e masculino não é a mesma, seja por uma questão histórica de pelo menos 40 anos, como também por questões sociais, culturais e financeiras. Pela experiência que tenho no futebol masculino e feminino, as principais diferenças são decorrentes de como o feminino não alcançou ainda uma sustentabilidade, então é carente de atenção interna por parte do clube por não conseguir se manter ou trazer fonte de receita; também por estrutura física, por vezes não utilizando a mesma do principal masculino ou nem mesmo da base do clube’’. Soma-se a essa realidade, segundo a consultora, a carência de bons profissionais para comissão técnica e funções de gestão, o que também contribui para desvalorizar o futebol feminino:

‘’É todo um sistema inter-relacionado. O futebol feminino não é igual ao masculino no que diz respeito ao apoio da mídia, a valores de negociação de atletas, em questões de investimentos, salários, estrutura física e nem em apreciação por parte das torcidas. Mas parto do princípio de que, a partir do momento em que se encontrar esse equilíbrio entre custo e receita, o carinho e a atenção interna do clube para com o futebol feminino será muito maior.’’

Camila Galimberti apoiando a jogadora Vic Albuquerque, do Corinthians
Reprodução: Adriano Fontes (@adrianofontesfoto – Instagram)

Para a atleta e amante de futebol, a estudante de História Penélope de Souza Ribeiro, o tratamento da sociedade em relação ao futebol feminino é reflexo do tratamento da sociedade com a mulher: ‘’Costumo dizer que acho o futebol extremamente político. É um reflexo da sociedade, então se as torcidas têm cantos racistas, machistas e homofóbicos, é porque a sociedade também o é. A desvalorização do futebol feminino é reflexo de como as mulheres são tratadas na sociedade: em qualquer ambiente profissional a mulher é vista como inferior ao homem, fazendo o mesmo trabalho que ele ou até mesmo um trabalho melhor. Como a Marta, por exemplo, que é a maior campeã em ser a melhor do mundo e o Neymar, que nem ganhou uma bola de ouro, é mais valorizado do que ela. Isso é um absurdo, por mais que ela tenha sido reconhecida como jogadora de excelência’’. 

Para a estudante, que é atleta de futebol desde os nove anos de idade, as maiores dificuldades estão relacionadas ao não reconhecimento da qualidade das atletas e dos times formados por mulheres:

“Os times masculinos sempre são priorizados nos campeonatos, ainda que o feminino apresente mais chances de conseguir vencer e, de fato, precise de mais atenção. Tem ainda a questão da visibilidade da modalidade: as pessoas assistem mais o masculino que o feminino e parte disso é culpa da mídia que coloca o masculino como o principal. Os jogos masculinos são em horários mais possíveis de assistir e em TV aberta, além da dificuldade de ir aos estádios para apoiar o time, que faz toda diferença, enquanto masculino é no domingo, um dia mais tranquilo, o feminino enfrenta dias e horários menos propícios.’’

Penélope Souza Ribeiro na Copa das Atléticas nos Vales (CAV)
Reprodução: Gabriela Barbosa (@gabrjelab – Instagram)

Tratado com desigualdade em relação ao futebol masculino, o feminino precisou, desde o início, do apoio e de medidas institucionais e políticas para buscar condições mais igualitárias. A partir de 2019, a CBF passou a cobrar, obrigatoriamente, que os times tenham uma equipe feminina adulta e uma de base de todos os clubes da série A do Campeonato Brasileiro. A medida adotada faz parte do Licenciamento de Clubes, documento responsável pela regulamentação de temporada de competições profissionais no país que atuam sob orientação da Conmebol. Esse foi mais um passo, um gol importante marcado pelas mulheres na busca por seu lugar no futebol brasileiro.

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