“XÓVENS”: não somos o futuro, somos o agora

Duas décadas atrás, a banda Charlie Brown Jr. já entoava: “O jovem no Brasil nunca é levado a sério”. Ainda hoje, o hit continua representando gerações e revela o nó preso na garganta dos que ainda não são adultos

Jovens – ou “xóvens”, termo que ganhou força nos últimos anos em forma de meme – são as pessoas que têm de 15 a 29 anos de idade, de acordo com o Estatuto da Juventude, publicado dez anos atrás. Eles representam 43,9% da população brasileira, segundo a Pirâmide Etária de 2021 feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Essa fase da vida é marcada por mudanças que, hoje, parecem acontecer de forma mais intensa e rápida, principalmente em razão do avanço tecnológico que parece alterar a noção de tempo. Passam-se gerações, mas a juventude continua sendo um período carregado de estereótipos e taxado, por exemplo, como uma fase de rebeldia e desinteresse. Na contramão desse pensamento – e já dando um spoiler sobre os próximos capítulossão os jovens que detêm o brilhantismo capaz de não só propor, mas ser mudança.

É estranhamente comum ouvir por aí que “os jovens não querem saber de nada”, “a juventude é rebelde e não respeita regras” ou “essa é a geração nem-nem: nem estuda e nem trabalha”. Frases como estas são só a pontinha do iceberg dos estereótipos negativos que os jovens carregam e essa realidade é ampliada quando se analisa classe, raça e gênero. Esses rótulos não geram só discriminação, mas também anulam o valor dessa galera que é multifacetada e protagonista no mundo e na sociedade.

A GENERALIZAÇÃO DOS NEM-NEM

Quase 40% dos jovens brasileiros se encaixam no termo “nem-nem”, ou seja, aqueles que não estão no mercado de trabalho e nem em instituições de ensino. Os dados foram levantados em 2022 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e colocam o Brasil na segunda posição mundial desse ranking. Entretanto, é preciso evidenciar que vários motivos colaboram para essa realidade, como o desemprego e a desigualdade no acesso à educação.

Além disso, identificar quem são essas pessoas mapeadas e a realidade na qual estão inseridas são fatores importantes. Por trás das estatísticas, existem jovens sem carteira de trabalho, mas que fazem informalmente “bicos”;  jovens grávidas que perdem o emprego e/ou que paralisam os estudos para cuidar de seus filhos; ou aqueles envolvidos em atividades domésticas, seja cuidando da casa ou de parentes; além de jovens que contam com ajuda financeira dos pais nesse período de transição entre escola e mercado. Sem contar aqueles envolvidos em trabalhos humanitários, artísticos ou esportivos. Mas, como o reconhecimento, incentivo e auxílio são escassos a esses jovens, eles acabam sendo generalizados nas estatísticas e sua imagem repercutida nas mídias.

O ESTEREÓTIPO DO JOVEM NA MÍDIA VERSUS O PROTAGONISMO 

Não distante, no início do milênio o cantor Chorão já entoava: “Eu vejo na TV o que eles falam sobre o jovem não é sério” e, analisando hoje, essa realidade não é tão diferente. Conforme pesquisa realizada por José Resende e pelo professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) Daniel Espíndula, publicada em 2020, “a representação social da juventude se ancora em um conhecimento socialmente partilhado sobre a figura negativa dos jovens sem formação ou qualificação profissional, de baixa renda e sem trabalho”.

Com seus feitos positivos pouco explorados pelos grandes veículos, além da escassa divulgação de oportunidades e de incentivos, fica ainda mais difícil desprender as amarras dos estereótipos ligados à juventude. Porém, mesmo diante das dificuldades, não é preciso ir muito longe para encontrar um jovem que age sozinho ou em grupo, e que promove mudanças em seu bairro, escola, faculdade, cidade, etc. Eles carregam a vontade de revolucionar e fazer acontecer.

O AMANHÃ É CONSTRUÍDO HOJE

Para compreender essa população pouco conhecida/reconhecida, o OUTROLHAR conversou com Mariana, Gabriel, Rayane e Thiago, jovens protagonistas que acreditam que o mundo pode melhorar, a começar por cada um quando decide agir para que isso se torne realidade. Eles assumem voluntariamente diversas obrigações que são responsabilidade do Governo, como muitos outros jovens fazem pelo país. Educação, saúde e políticas públicas são alguns exemplos do que essa juventude tem como base de atuação. 

Os quatro mostram que a conhecida frase “os jovens são o futuro da nação” vem de um lugar onde se pensa que o papel do jovem se encontra apenas no futuro, assim, as necessidades do agora vão sendo deixadas para depois. Ou seja, projetar somente o amanhã, quando os jovens estiverem amadurecidos, é esquecer da importância que eles precisam ter hoje, agora. O amanhã é resultado da construção do hoje. Confira!

“QUERO AJUDAR AS PESSOAS DE ALGUMA FORMA”

Mariana Reis tem 22 anos de idade, é nutricionista formada pelo Centro Universitário de Viçosa (Univiçosa) e começou a compartilhar seus conhecimentos de redação quando tinha 18 anos de idade, devido à sua facilidade em aprender e ensinar. Ela orientava os amigos do Ensino Médio sobre o texto cobrado no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas, de dica em dica e ciente da precarização do ensino público brasileiro, ela percebeu a possibilidade de criar um projeto social. 

Assim, montou um cursinho popular de redação, com apoio da Paróquia da sua cidade natal, Porto Firme, em Minas Gerais, que cedeu o espaço.

Reprodução: acervo pessoal

“Eu sabia que na escola que eu me formei a gente não tinha o suporte necessário para fazer uma redação dissertativa argumentativa com uma nota boa. A grade não cumpria tudo que era necessário saber. Então eu fazia isso, ajudava as pessoas da minha cidade, que é uma cidade pequena, e a maioria das pessoas realmente não tem condição de pagar curso preparatório […]”, observa Mariana.

Os sábados já tinham um espaço reservado na agenda da jovem. Ela saía da zona rural onde morava para ir à cidade partilhar seus conhecimentos e foram dois anos de dedicação aos mais de 50 alunos por turma, cerca de 100 vidas impactadas. Até mesmo no auge da pandemia, em 2020, Mariana deu um “jeitinho” para que o projeto não parasse e as aulas passaram a ser virtuais. Sem retorno financeiro e sem pretensão de que isso acontecesse, a jovem era frequentemente questionada pelas pessoas do porquê gastar tempo com aquilo, mas ela estava mais preocupada mesmo em ajudar o próximo. Entre a correria, preparações de aulas, materiais e feedbacks, Mariana enche os olhos d’água ao lembrar que contribuiu para que os sonhos de muitos jovens se concretizassem:

“Tenho vários alunos que hoje em dia fazem biomedicina, direito, pedagogia, geografia, enfermagem, vários cursos… Me mandaram mensagem agradecendo porque, realmente, por mais que seja mínimo para mim, fez muita diferença para essas pessoas”, conta.

Hoje, já formada em Nutrição, a jovem continua protagonizando e sendo agente de mudanças. Dessa vez, investiu em novo projeto, o “Missão Nutri ON”, ação voltada a oferecer consultas online para a população de baixa renda que não tem condição de pagar o acompanhamento, mas que precisa do serviço. Ela oferece o serviço com a mesma qualidade da consulta particular, mas com um valor social – bem abaixo do que normalmente cobraria.

Reprodução: Instagram @nutrimarianareis

Embora não tenha sido demasiadamente apoiada para que os planos fossem colocados em ação, Mariana segue agarrando em sonhos e faz acontecer. Ela, que ao longo de sua vida dependeu de muitos projetos e auxílios para chegar aonde está, devolve ao mundo o que fizeram por ela, do jeito que dá.

“SONHAR, PORQUE NOS MOVE. FAZER, PORQUE É POSSÍVEL”

O Coletivo Formigas impacta positivamente diversos espaços da cidade de Viçosa, em Minas Gerais, como aconteceu na comunidade Nobres | Reprodução: Gabriel Soares

A frase, no título, define o Coletivo Formigas. Já imaginou um grupo de jovens reunidos, dispostos a contribuir para melhorar espaços urbanos e, tudo isso, de forma voluntária? Esse é um projeto de extensão fundado por estudantes do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viçosa (UFV). O objetivo principal do projeto é a  busca por uma arquitetura mais acessível, humana e sustentável, e um urbanismo colaborativo, sempre pautado nas trocas interpessoais com as comunidades onde desenvolvem suas ações. 

Os jovens do Coletivo fazem jus ao nome e atuam como verdadeiras formigas: de mão em mão e de passo em passo conseguem mapear as necessidades das comunidades, constroem relações e trocas de saberes com os moradores e, juntos, promovem reformas e construções necessárias para empoderar aquele local, que será usufruído por quem faz parte dali e daquela história.

Atuante no Formigas desde os 19 anos de idade, o estudante de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Viçosa (UFV), Gabriel Soares, garante que expandir relações e incentivar o poder da construção coletiva geram retornos muito positivos, tanto no futuro profissional quanto na pessoa. Quando atuavam na comunidade Córrego dos Nobres, zona rural de Viçosa, convocaram mutirões e construíram uma cozinha comunitária de pau a pique – técnica já usada pela comunidade – contribuindo para a melhoria do espaço e preservação de memórias.

“O maior retorno para mim são pessoas da universidade conviverem com outras pessoas, no trabalho em equipe, e também sair da realidade em que a gente vive. Saber o que tem além de Viçosa, o que estão precisando… e entender também o contexto em que a gente está vivendo”, expressa Gabriel.

Reprodução: acervo pessoal

Desde 2015, o Coletivo Formigas já esteve envolvido em mais de 15 ações, sete projetos e mais de cinco comunidades foram impactadas. São jovens protagonistas de mudanças, que abraçam lugares e pessoas, empenhados em promover transformações para além da sociedade onde estão inseridos.

“UM SONHO EM DAR UM PASSO ALÉM DA MINHA REALIDADE”

Rayane Loch se envolve em projetos sociais desde os 20 anos de idade e, há cerca de dois anos, fundou a Escola do Vira Lata, em Viçosa | Reprodução: acervo pessoal

Rayane Loch nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, tem 30 anos de idade e, atualmente, é doutoranda em Bioquímica Aplicada pela UFV. Ela se considera uma pessoa inquieta e, talvez por isso, já tenha protagonizado tantas mudanças. Aos 20 anos de idade, fundou o coletivo feminista Mulheres em Movimento, quando era graduanda na Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ). O coletivo nasceu em um contexto machista e foi promotor de denúncias, ações de empoderamento feminino e de conscientização sobre diversas temáticas de gênero. 

Não obstante, aos seus 22 anos de idade, foi uma das fundadoras de um cursinho popular para pessoas de baixa renda interessadas no Enem, o Integrar. O cursinho expandiu e hoje é um Projeto de Extensão da UFSJ e do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG), em parceria com a Prefeitura de Ouro Branco, em Minas Gerais. Constituído por jovens, o Integrar apoia sonhos e contribui para que o ensino superior possa se tornar realidade na vida das pessoas mais vulneráveis economicamente, por meio da democratização ao acesso à educação pública.

Reprodução: acervo pessoal

“ Às vezes falta apoio da sociedade, falta enxergar o jovem como um cidadão que é capaz de desenvolver ações, […] principalmente os jovens que têm o espírito de querer mudar as coisas”, pontua Rayane.

Rayane continuou assumindo protagonismo das mudanças e fundou em Viçosa, aos 27 anos, a Escola do Vira Lata, que é um projeto focado em ajudar a causa animal. A jovem tornou-se protetora independente depois de adotar a primeira cadela de rua, além do inconformismo com a situação de fome, maus tratos e abandono desses animais. Desde a fundação da Escola, em 2020, Rayane arrecada recursos por meio da venda de rifas, chaveiros, velas, camisas e do oferecimento de minicursos. Entre os conhecidos com habilidade em alguma área e dispostos a ministrar aulas, são organizados os cursos e todo o valor arrecadado com as inscrições é revertido aos bichinhos.

A protetora está sempre em busca de mobilizar pessoas para atuar na causa animal, de acordo com a realidade de cada uma: há quem adote animais, acompanhe em consultas, doe medicamentos e rações. Esses alimentos são distribuídos a outros protetores, e, mensalmente, cerca de 600 quilos de ração são doados. Entre ações e resgates, as dez jovens que compõem a Escola do Vira Lata, juntamente com toda a rede de apoio, assumem a linha de frente para garantir melhores condições aos animais de rua, amenizando a falta do poder público.

“EU TENHO QUE PASSAR AQUI PRA MUDAR ALGUMA COISA”

Desde cedo envolvido em projetos sociais da comunidade e da igreja, o viçosense do curso de Ciências Contábeis da UFV, Thiago Salatiel, que tem 18 anos de idade, atuou por três anos no Parlamento Jovem de Viçosa, programa focado em estimular a formação política dos jovens e criar espaços institucionais de interlocução entre a sociedade civil e o Legislativo. 

O projeto foi um divisor de águas na vida de Thiago, que hoje é engajado politicamente, tem o senso de responsabilidade, cidadania e respeito à diversidade muito mais lapidados. Temas abordados durante o projeto, como o meio ambiente, por exemplo, atinaram em Thiago a ideia de separar o lixo em casa, provando que pequenas atitudes realizadas diariamente fazem toda diferença. Atuante, Thiago já representou Viçosa em eventos do Parlamento Jovem em Belo Horizonte, onde teve contato com muitas pessoas da sua faixa etária e pode perceber o quanto a juventude é uma potência viva e atuante, indo na contramão dos estereótipos.

Reprodução: acervo pessoal

“Eu acredito que a gente pode ser o presente. A gente é hoje, sabe? Eu quero mudar hoje. Eu detesto essa coisa de que a gente só vai mudar o futuro. Não, a gente tem que mudar agora. É no hoje, é no pouco”, afirma Thiago.

Somado a isso, Thiago fundou, em 2021, o “Natal Sem Fome”, uma campanha lançada em seu próprio Instagram para arrecadar alimentos para doação às famílias mais vulneráveis. O garoto conseguiu mobilizar parentes, amigos e vizinhos e construiu uma rede de apoio para captação e distribuição das cestas, e fez questão que, em cada uma, tivesse um panetone para fazer a alegria das famílias. Já são dois anos de projeto e mais de 20 famílias beneficiadas em cada ano, cumprindo o objetivo maior de Thiago de ajudar a quem precisa, de fazer a diferença por onde passa. Para ele, que ingressou no curso de Contábeis em 2023, a expectativa é abrir o leque de oportunidades, mas “devagar, procurando, sabendo, pesquisando, qual vai ser o novo? O que que eu vou fazer de novo?”.

A iniciativa “Natal Sem Fome”, criada por Thiago, levou comida à mesa de diversas famílias de Viçosa, sem esquecer do tradicional panetone | Reprodução: acervo pessoal

Esses são quatro jovens diferentes e imersos em realidades distintas, mas que carregam no peito o anseio por mudanças e, com pequenos passos, concretizam grandes transformações em suas comunidades, na cidade, na universidade, tendo grande potencial para se ampliarem cada vez mais. Eles são apenas alguns dos inumeráveis jovens que não ficam de braços cruzados, mas arregaçam as mangas e promovem impactos sociais, educacionais e culturais. Mesmo com a escassez do apoio moral e financeiro, com a falta de perspectiva que os mais velhos os enxergam, com o esquecimento e as mazelas do Governo, eles são mais do que protagonistas: são inspiração.

“Não se pode parar de lutar
Senão não muda
A juventude tem que estar a fim”
Não É Sério – Charlie Brown Jr

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