Apenas quatro dos sete métodos garantidos pela Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) são distribuídos em todas as regiões brasileiras, segundo dados levantados pelo IBGE
-16 de dezembro de 2024
Apenas quatro dos sete métodos garantidos pela Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) são distribuídos em todas as regiões brasileiras, segundo dados levantados pelo IBGE
O Plano Nacional de Saúde (PNS) é desenvolvido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e descreve as políticas públicas e obrigações do setor de saúde do país. O PNS traz ainda políticas específicas como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), que prevê iniciativas direcionadas ao cuidado e à a saúde das mulheres, entre elas, a atenção à contracepção e ao planejamento familiar e reprodutivo, que são essenciais para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos assegurados pela Lei 9.263/96, e atualizados pela Lei 14.433/22.
Em tese, os direitos sexuais devem garantir autonomia, liberdade, educação, privacidade e proteção contra violências, enquanto os direitos reprodutivos garantem o acesso à contraceptivos, ao planejamento familiar, acompanhamentos de pré-natal, parto e pós-parto, além do direito ao aborto nos casos permitidos pela lei, como gravidez resultante de estupro.
Segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) elaborada pelo IBGE, em 2021, cerca de 94,15% dos municípios brasileiros contavam com o programa de Planejamento Familiar/Reprodutivo e, destes, 99,77% ofereciam a distribuição de métodos contraceptivos. Por outro lado, pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, realizada entre 2011 e 2012, mostra que mais de 55% das gestações não foram planejadas. Estes dados, em contraponto, indicam que existem barreiras no exercício dos direitos reprodutivos que comprometem a eficácia das políticas públicas, como o acesso aos contraceptivos oferecidos pelo SUS.
O documento do SUS que orienta o uso e a distribuição de medicamentos, incluindo os métodos contraceptivos no Brasil, é a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), no qual estão listados os contraceptivos hormonais (orais e injetáveis), os dispositivos intrauterinos (DIU), os métodos de barreira (diafragma e preservativos), contraceptivo de emergência (pílula do dia seguinte) e, ainda, métodos cirúrgicos como laqueadura e vasectomia.
Na teoria, todos os métodos listados na Rename devem ser distribuídos gratuitamente em todo território brasileiro. Mas, na prática, nem todos chegam às Unidades Básicas de Saúde (UBS) devido a problemas de gestão, logística, diferenças regionais e recursos limitados, como mostra o último levantamento do Perfil dos Municípios Brasileiros realizado pela MUNIC Essa falha no próprio sistema revela que existe uma barreira estrutural que dificulta o acesso à contracepção, já que, entre os Métodos Reversíveis de Longa Duração (LARCs), que são considerados mais eficazes, apenas o DIU de cobre é oferecido pelo SUS.
De acordo com a ginecologista, obstetra e professora do curso de Medicina da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Daniele Roedel Amaral, outras barreiras que dificultam o acesso aos métodos contraceptivos são culturais. Para ela, essas barreiras são construídas em um cenário marcado por desinformação, especialmente em relação aos LARCs. Com base em sua experiência em ambulatórios de saúde pública, Amaral afirma que a maioria das mulheres não tem conhecimento sobre a diversidade de métodos contraceptivos para além da pílula anticoncepcional, que é o método mais utilizado. Ela também aponta que a desinformação leva à interrupção incorreta da contracepção e, consequentemente, à gravidez indesejada.
“Muitas mulheres chegam ao consultório sem saber quais outras opções teriam, como o DIU que o SUS fornece e que ela pode usar. Elas vêm, às vezes, muito desinformadas em relação ao uso do método. […] muitas vêm, por exemplo, com medo porque tomavam um anticoncepcional oral e ficaram com medo de ter uma trombose ou uma embolia e simplesmente interrompem a contracepção. Então a gente orienta: vamos parar se você não quer um contraceptivo hormonal, mas vamos parar de maneira consciente. Vamos pensar primeiro em qual método você vai usar, não é simplesmente parar.”
Para Daniele Amaral, informação e educação sexual são fundamentais para a desconstrução de tabus e o combate à desinformação sobre métodos contraceptivos, pois minimizam os altos índices de gravidez indesejada e abortos no país.
Desde 2011, o Ministério da Saúde por meio da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, se compromete a promover o acesso à saúde da população LGBTQIAPN+, com o objetivo de diminuir a discriminação e o preconceito no sistema de saúde. Isso é feito por meio da capacitação dos profissionais da área, um atendimento sensível à diversidade de gênero e orientação sexual, e da ampliação da oferta de ações e métodos contraceptivos que atendam a essas pessoas. Entretanto, a falta de entendimento por parte da equipe médica ainda persiste, tal como o escasso referencial teórico acerca dos efeitos e implicações desses métodos no corpo de pessoas não-cisgêneras como homens trans que fazem tratamento hormonal. Isso contribui para a exclusão, marginalização e violação dos direitos reprodutivos da população LGBTQIAPN+.
Na busca por inclusão de pessoas que não se identificam com a identidade cisgênera, o termo “pessoas que menstruam” surge como uma forma de acolher pessoas transgêneras, não-binárias e intersexuais que também passam pelo ciclo menstrual e precisam de atendimento e acompanhamento médico. A escolha e o uso do método contraceptivo mais adequado, para essas pessoas, deve levar em consideração as suas singularidades, fatores socioeconômicos e também seus desejos reprodutivos e sexuais.
Em conversa com a estudante e moradora de Viçosa, Luiza* (23), que se identifica como uma pessoa não-binária, ela aponta que além das dificuldades enfrentadas para encontrar um método que se adeque a ela e à sua vida sexual, foi preciso enfrentar a desinformação acerca das questões de gênero, sexualidade e identidade por parte dos profissionais de saúde. Até ter um diagnóstico adequado, Luiza passou por procedimentos aplicados de forma precoce, como seu primeiro preventivo (exame realizado para detecção de câncer de colo de útero ou outras infecções sexualmente transmissíveis, recomendado a partir dos 25 anos de idade), ainda na adolescência.
“No final das contas, eu descobri que eu não tenho nenhum problema hormonal. Talvez sejam problemas de lidar com os empecilhos sociais, de ser uma pessoa não-binária que tem uma biologia tecnicamente feminina e que precisa se adequar a isso se quiser não se fechar para outras relações também.”
*Trata-se de um nome fictício a fim de preservar a imagem da fonte.