Por Abraão Filipe Oliveira e Maria Fernanda Ruas
Anitta, Ludmilla, Pabllo Vittar, Gloria Groove… Esses são nomes de grandes artistas da música brasileira popularmente conhecidos, nos dias atuais, em solo nacional e internacional. Além de membros da categoria artística, essas pessoas carregam em seus corpos marcadores característicos de grupos historicamente violentados, como as mulheres, as pessoas negras e, também, são parte da comunidade LGBTQIAP+.
Para início de conversa, a sigla LGBTQIAP+, comumente utilizada para descrever pessoas que se distanciam dos padrões cis e heteronormativos, acolhe mulheres Lésbicas, homens Gays, Bissexuais, Transgêneros, as Travestis, Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e o sinal de mais (+) indica a possibilidade de outras expressões de gênero e modos de se relacionar, como o é o caso das pessoas que se identificam com o poliamor.
A partir disso, artistas que diferem de padrões corporais atribuídos a homens e mulheres e/ou que se relacionam não apenas com base nas relações heteronormativas estão presentes, cada vez mais, em eventos onde podem expressar sua arte, como bares, festivais e casas de shows.
Ocupar esses espaços é uma conquista muito significativa, pois sinaliza avanços na concretização de sonhos de artistas como Cazuza e Renato Russo, que, entre os anos 80 e 90, por meio de suas artes, já tematizavam reivindicações de liberdade de expressão, resistiam à homofobia e a diferentes formas de discriminação.
Eu quero alguém na areia da praia
Quero alguém que use calça ou saia
Quero alguém, é melhor que nada
Quero alguém pra ter do meu lado
Pessoa rica, pessoa pobre
Pessoa que ouve, pessoa surda
Fria, bonita, suja, cheirosa
Eu sou tão só
Meus pais não me conhecem
Meus amigos são chatos
Meu cachorro não me lambe
Mas eu quero alguém
Quero alguém
Eu quero alguém – Cazuza, 1989
As pautas dessa comunidade têm avançado ao redor do país, no correr das últimas décadas, garantindo direitos que surtem efeitos práticos na sociedade. E Viçosa tem sentido os impactos dessas articulações.
Artistas LGBTQIAP+ em Viçosa
No dia 25 de junho de 2022, aconteceu a primeira edição do evento “Orgulhe-se”, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura, Patrimônio Histórico e Esportes da cidade. A programação teve como objetivo pautar temas importantes para a comunidade LGBTQIAP+, como saúde, representatividade, acolhimento e direitos dessa população – em referência ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+. A data é comemorada anualmente em 28 de junho, quando se deu a Revolta de Stonewall (1969), considerada um marco do movimento LGBT contemporâneo.
Ainda nesse sentido, houve apresentações artísticas, selecionadas por meio de edital, incluindo os segmentos de Arte Drag, Música e Teatro, representados por pessoas da comunidade LGBTQIAP+ de Viçosa e região. Aberto ao público, o “1º Orgulhe-se” aconteceu na Estação Cultural Hervé Cordovil, no centro de Viçosa, com atividades que começaram à tarde e foram até o fim do dia.
Eventos como esses, na cidade, são muito importantes, porque, apesar de artistas da classe estarem entre os indivíduos mais ouvidos no país em plataformas como o Spotify, o Brasil ainda lidera o ranking de países que mais matam LGBTs, conforme conta o relatório “Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil – 2021”, produzido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). De acordo com o estudo, em 2021, pelo menos, 300 pessoas foram mortas vítimas de LGBTfobia no país, o que aponta para uma morte a cada 26 horas.
Um espaço para esses artistas no contexto da música local
Ainda que os números apontem para uma triste realidade, esses corpos resistem, re-existem e dão show – nos melhores dos sentidos. É o caso de Lucas Araújo Silva, o Afro DJ, e Mariana Amaral, dois artistas que moram em Viçosa e se identificam como LGBTs.
Professor de Inglês na rede pública de Ervália – MG, Lucas Araújo Silva conta que, apesar de entender sua atuação enquanto DJ como uma manifestação artística – que, nos dias atuais, pede dele tempo e preparo –, no início de sua carreira, ele era movido pela paixão e pelo hobby de modo mais despretensioso. Mas, com o tempo, a arte de ser DJ, para ele, foi fazendo uma transição, gerando uma renda extra e abrindo oportunidades de show online durante a pandemia e agora, em 2022, com o retorno dos encontros presenciais.
Já Mariana Amaral está no início da carreira, mas sua experiência não é pouca. Atualmente com 24 anos, ela começou a dedilhar o violão em 2016, quando chegou para estudar Engenharia Florestal na UFV. Começou sendo convidada para cantar no bar Teddies Edinho em 2019 e, aos poucos, foi percorrendo outros lugares pela cidade. Nunca mais parou.
Apesar de afirmar ter uma trajetória curta, esse sonho é alimentado desde a infância:
“Eu peguei para aprender violão em 2016, quando cheguei em Viçosa. Na época, já tinha contato com amigos que mexiam com música, então me surgiu o interesse. Mas eu ficava enrolando… Comecei a me apresentar em barzinho, dois meses antes da pandemia, aí o resto todo mundo sabe (fazendo referência à interrupção das atividades por conta da Covid-19). Quando eu era criança, queria muito ser cantora, só que todo mundo falava que eu cantava mal (risos). Acho que o violão me deu uma afinação, aí eu falei: olha, tem uma oportunidade de realizar um sonho de criança aqui heim (risos), aí foi acontecendo…”.
Desafios no cotidiano
Quando perguntados sobre as dificuldades enfrentadas, ambos são receosos em relacionar diretamente que os desafios vivenciados em suas trajetórias pessoais são por decorrência dos marcadores de sexualidade. Contudo, são enfáticos em dizer que, sim, o cenário realmente não é fácil para eles e os demais artistas LGBTQIAP+.
“As dificuldades aparecem sempre, né?! Se você pensa que o mercado musical é muito dominado pelo sertanejo, já é um movimento muito difícil para artistas LGBTs se expressarem. Em outros contextos, de Barzinho, por exemplo, não é um ambiente onde você pode expressar sua liberdade artística, no sentido de expressar mesmo a identidade LGBT, do que você quer falar sem ter medo de alguma pessoa te olhar torto ou sofrer até algum tipo de discriminação direta”, afirma Mariana Amaral.
O Afro DJ também relata ações pontuais que desvalorizam e desrespeitam o seu trabalho, como ele conta quando “um DJ mais conhecido que não me esperava terminar de tocar e já ia me cortando pra poder acabar logo, já vivi isso em eventos que não eram LGBTs”. Apesar disso, ele não se abala. Desde 2016, pelas suas contas, já foram mais de 90 eventos em que pode participar, levando seus sets e seleções musicais.
Vale reforçar que ambos se veem como pessoas cis (ou seja, se identificam com o sexo atribuído no nascimento) e performam uma expressão de gênero não muito distante da heteronormatividade – o que, de certa forma, acaba se constituindo como um privilégio, tendo em vista que, nas dinâmicas sociais, em sua complexidade, outros atravessamentos como a racialidade, classe, pertença religiosa, deficiência, entre outros, podem tornar algumas existências mais expostas a violências que outras.
Dificuldades Locais
Em relação à realidade especificamente viçosense, também há os desafios locais de estrutura, a ausência de casas noturnas voltadas para a comunidade e as dificuldades com financiamento e logística, conforme apontam os entrevistados.
“Acho que Viçosa explora pouco a questão cultural, ou até explora, mas isso chega pouco para a população. Na minha visão, a cidade não tem um histórico de valorização de pessoas LGBTS que sejam artistas locais. O que eu vejo mais forte na cena cultural são os grupos de dança e também tem o rap nas periferias de Viçosa, mas que não é muito divulgado. Parece que Viçosa vive realidades muito diferentes: as pessoas que estão na UFV e as pessoas da cidade. E esses mundos quase nunca se misturam”, afirma Lucas Araújo.
Mariana também vê influências no fato de Viçosa ser uma cidade universitária, pela presença da UFV: “Provavelmente em Viçosa, mesmo com os conflitos que tem de não poder apresentar determinados estilos em todos lugares, ainda tem a abertura da Universidade que abre um leque para que se tenha um público”. Para a engenheira florestal, o movimento de apoio a iniciativas artísticas, culturais e musicais ligadas à comunidade LGBTQIAP+ ainda é recente no município.
Repertórios e perspectivas: o que ouvem, tocam e vislumbram?
Diante disso, é possível perceber que essa deslegitimação e invisibilização sofrida pelos artistas também está ligada ao repertório selecionado por eles, que faz referência às temáticas vivenciadas no dia a dia e que também têm um posicionamento ético e político de respeito e valorização da diversidade – o que, muitas vezes, não é bem visto, por alguns públicos.
O Afro DJ, por exemplo, faz questão de selecionar músicas que não objetifiquem ou desvalorizem a mulher e não reforcem estereótipos sobre os grupos minorizados:
“Na música, a gente vivencia muito a nossa realidade. Então, o artista LGBT vai cantar de coisas que lhe são comuns, falando sobre o combate de preconceitos, mas também da questão da diversão que, enquanto grupos minorizados, deixamos de viver ao longo da vida. Ali naquele espaço, é possível encontrarmos liberdade”, afirma o artista.
Mariana, em seu repertório, tem explorado múltiplas vertentes. “A minha identidade artística está muito ligada ao MPB. Eu gosto muito de cantar Elis Regina, Maria Rita… E também estou na vibe de passar para uma música pop. Tenho apresentado muita música da Anitta, Luísa Sonza, divas pops mesmo (risos). Eu também tenho uma dupla sertaneja com a Bia Dias, uma outra artista LGBT. Então estou indo pro sertanejo por questões financeiras, mas, em geral, gosto muito do MPB e do POP”, compartilha.
Ela afirma que está sendo interessante fazer todas essas transições e sua expectativa é conseguir, aos poucos, se sustentar financeiramente para viver só na música:
“Estou num momento de descobrir minha identidade e eu tenho essa vontade de sair do barzinho, voz e violão, e ir para o palco, onde eu possa me expressar mais como artista, onde eu possa dançar e cantar ao mesmo tempo, apresentar uma coisa que mostre mais minha arte em si. Então, acho muito legal que Viçosa está promovendo esses espaços para gente poder mostrar essa nossa identidade.”
Para Lucas Araújo, estar envolvido com música é “terapia para a saúde mental” e visualiza também horizontes positivos, pessoal e profissionalmente:
“Eu tenho muita ansiedade e expectativa. Há seis anos, quando eu iniciei o “Afro DJ”, foi como um hobby mesmo. Hoje, eu estou em um outro momento da minha vida, mas sigo vislumbrando me manter envolvido assim, ao mesmo tempo que eu não gostaria de abandonar minha trajetória de professor, que acabei de começar e ainda quero construir muito. Acredito que ainda continuarei morando aqui em Viçosa por mais tempo e aqui é um lugar muito rico para eventos. Então, eu gostaria de voltar a ter espaços nesses eventos, retomando após a pandemia. Eu espero que esse mercado de DJs em Viçosa possa ser ampliado e ter mais DJs LGBTs que ocupem esses espaços não só nas festas LGBTs, mas também festas com outros estilos, renovando a cena LGBT da cidade e pensando questões mais amplas para além da diversão, para tentarmos mudar, inclusive, o cenário político do nosso país”, finaliza ele.
Se ser um corpo LGBTQIAP+, no Brasil, é imensamente desafiador, quando artistas se levantam, se organizam e colorem os sons de uma cidade interiorana como Viçosa estão celebrando a existência e a afirmação da vida de toda uma comunidade.