quinta-feira, novembro 21

Como a música cruza o congado de Airões

Por Abraão Filipe Oliveira e Maria Fernanda Ruas

Estamos chegando dos pretos rosários,
estamos chegando dos nossos terreiros,
dos santos malditos nós somos,
viemos rezar.

Estamos chegando do fundo do medo,
estamos chegando das surdas correntes,
um longo lamento nós somos,
viemos louvar.

Milton Nascimento

O cantor, compositor e multi-instrumentista, que cresceu em Minas Gerais, Milton Nascimento, lançou, em 1982, o álbum “Missa dos Quilombos”, pela gravadora Ariola. Gravado ao vivo na Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens, em Caraça-MG, e produzido em parceria com Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, a ousada proposta do álbum era registrar uma missa inculturada, isto é, formada por tradições do catolicismo europeu, mas também por elementos afro-brasileiros e da cultura popular concebida no território brasileiro. Dessa forma, celebrava-se a presença negra na formação de nosso país e na tradição popular.

A primeira faixa desse álbum é “A de Ó”, a canção que abre a matéria. Quem faz questão de lembrar a música e a força que sua letra traz é Sebastião Farinhada.

Sebastião Augusto Estevão, mais conhecido como Sebastião ou Tião Farinhada, é artista popular, violeiro, cantador e contador de histórias. Entre os anos de 2015 e 2016, ele foi rei do Congado, da Comunidade Quilombola do Córrego do Meio, próximo a Airões, distrito de Paula Cândido-MG. Sua participação foi muito importante, pois, conforme ele explica, seu reinado foi responsável em fazer um giro que acabou impactando os congados de toda a região e o povo da comunidade.

“A minha chegada ao Congado provocou não só o Córrego do Meio, mas chamou toda a região a trazer a missa inculturada. Uma missa africana teria que ter a liturgia só com elementos afro, e não é o caso, porque a liturgia ainda é romana. Antes o povo tinha medo, mesmo o padre negro não tinha coragem. Agora, nós preparamos celebrações inculturadas para contar a história do nosso povo negro, que é o que estamos fazendo no Rosário”, relata Farinhada.

Natural do município de Divino-MG, o congadeiro é de família que tradicionalmente celebra a cultura e a religiosidade popular, mas foi só em 1997 que ele teve contato com o Congado, em Ermida – distrito de Divinópolis.

Ele relata que, no seu primeiro encontro com a festa, “foi tão forte esse encontro com o Congado, que, quando os congadeiros chegaram ao espaço do evento que estava havendo a noite cultural, quando eu vi aquela guarda vestida de branco e azul, com coroa na cabeça, rei e rainha e a bandeira de Nossa Senhora do Rosário, eu me comportei como se eu estivesse recebendo a folia, porque a folia eu sabia receber”. “Então, eu ajoelhei, peguei a bandeira e levei a bandeira para o salão”, ele conta.

A partir daquele momento, a vida de Farinhada nunca mais foi a mesma.

Da África para o Brasil: as origens ancestrais da festa

Com o novo desafio, Sebastião Farinhada relata suas pesquisas pelo passado

Diante de um convite tão especial, o congadeiro fez um percurso que reúne ancestralidade, memória, religiosidade, cultura e tradição popular, em busca de compreender melhor as origens dessa tradição cristã fortemente marcada pela influência africana, em território brasileiro — uma trajetória que se dá junto com a comunidade, ao lado do Reinado e da banda do Congado de Airões, e vai desenhando um mapa das origens dos congados mineiros. E mais do que isso: faz um traçado das expressões de sobrevivência e resistência do povo negro, pela reafirmação da cultura africana, em meio às encruzilhadas da existência.

Nei Lopes, cantor carioca, compositor, escritor e uma das maiores referências no estudo das culturas africanas no Brasil, em sua obra “Enciclopédia brasileira da diáspora africana”, publicada em 2004, traz a seguinte definição para o Congado, sinônimo de Congada, descrita como:

A festa, que materializa o catolicismo popular, reúne, ao mesmo tempo, elementos religiosos-espirituais, bem como culturais, musicais e afetivos, de acordo com as singularidades de cada localidade.

Além da festa de Nossa Senhora do Rosário, oficialmente comemorado no dia 7 de outubro, outra celebração cultuada comumente pelos grupos do Congo é a Festa do 13 de Maio. A data, que visa refletir a conquista da abolição à escravidão no Brasil, diz da resistência, da fé e devoção de um povo. Complementar às homenagens destinadas às irmandades de São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia, o festejo faz menção a antepassados negros, incorporando à tradição católica elementos da cultura africana. Um nome de muita influência nas celebrações do Congado mineiro é Chico Rei.

Sebastião Farinhada conta a história de Chico Rei e sua relação com os congados mineiros

A Banda de Congo José Lúcio Rocha, de Airões, possui 133 anos e, atualmente, é regida pelo Mestre Congo Antônio Matias Celestino, popularmente conhecido como Mestre Boi.

As fotos abaixo foram tiradas por Raoni Garcia, na edição de 2019 da Festa do Rosário.

Fotos: Raoni Garcia

Festa e celebração: quem canta no congado no mês da Nossa Senhora do Rosário

Farinhada traz em seus relatos a importância da música, que, em muitos espaços, é lida como uma reverência, um gesto de respeito e apreço às pessoas socialmente vistas enquanto nobres. Nas festas do Congo, isso não é diferente. O congadeiro explica a estrutura da banda, que é formada pelos dançantes, os bandeireiros, os corta-vento, o capitão ou capitã da coroa, o rei, a rainha e o mestre.

Maria de Lurdes Mateus, moradora da Comunidade Quilombola do Córrego do Meio, conta que foi ela a primeira mulher a dançar Congo em Airões. Na festa do Rosário, as celebrações da banda de Congo expressam músicas que anunciam e saúdam a entrada e a saída da Santa, bem como os nomes do rei e da rainha da festividade.

Vestida de roupas brancas e capacetes coloridos, a Banda de Congo faz um percurso que tem início nove dias antes do dia de Nossa Senhora do Rosário, com a reza da Novena.

Amanda Moura Souto, em seu artigo “Hoje Teve Alegria no Rosário de Maria: Uma Descrição Densa da Festa do Rosário em São José do Triunfo, Viçosa/MG”, explica que as celebrações que se estruturam em torno da celebração da canonizada se baseia nos seguintes elementos: Novena, Levantamento do Mastro, Alvorada Festiva, Almoço e Missa Festiva. “Os cortejos realizados pela Banda de Congo atam todos esses acontecimentos”, afirma a pesquisadora.

Na região, os modos de festejar a Festa do Rosário têm uma base fixa, mas tradições podem variar, de acordo com os costumes de cada lugar. Em Airões, o evento ocorre no terceiro final de semana de outubro.

Maria de Lurdes explica como a celebração em Airões ocorre: “tem o terço de nove dias. Aí, passados os nove dias, já é o início da festa que é no sábado. A gente vai, levanta o mastro, vai à casa da rainha, ela dá um lanche pra gente, uma janta. Aí, a gente vai para casa dormir, porque às cinco horas tem alvorada, né? Aí, é o dia inteiro”, ela relata.

“A preparação para a festa do dia da Santa começa no sábado. A gente, às 7 horas, vai lá na igreja, levanta o Mastro, vai à casa da Rainha. Cinco da tarde, a gente passa na casa de uma dona que aqui, chamada Dona Chiquinha, ela era parteira, mas já morreu. A gente passa na casa dela, pula lá um pouquinho. Depois, a gente vai para levantar o mastro. Tem a missa, se houver padre. Se não, é o terço”, explica a lavradora aposentada.

Quando perguntado sobre o papel das canções na festa, Farinhada é enfático: “A música é essa conexão direta com a espiritualidade. Ela te coloca no lugar da história. Quando eu ouvi pela primeira vez a batida da caixa do congado, quando o cortejo foi chegando, o negócio fez uma revolução na minha vida”, declara, extasiado. Ele comenta, ainda, sobre como se dá sua relação com a festividade: “Eu não sei se eu entrei (para a festa) ou se ela entrou em mim. Hoje, eu, Sebastião Farinhada, faça sol ou faça chuva, eu não consigo viver sem a Festa do Rosário”.

Com firmeza na voz, quando questionada sobre como se sente por fazer parte do Congado de Airões, Maria de Lurdes exclama: “Maravilhada! Eu pulo Congo para Nossa Senhora do Rosário, devido a eu ter passado por muitos problemas. Aí, eu falei que iria agradecer ela e eu pulo até hoje. E há muitos milagres que eu tenho recebido de Nossa Senhora do Rosário”.

E finaliza, cantando:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *