O cenário musical no Brasil é um reflexo da sociedade desigual e predominantemente masculino. Segundo o relatório “O que o Brasil Ouve – Edição Mulheres na Música”, dos R$ 901 milhões arrecadados com a música em 2021, apenas 7% foram direcionados a artistas mulheres. Também foi apontado pelo relatório que apenas 10% dos titulares contemplados com direitos autorais eram mulheres, e destes, 29% são intérpretes e apenas 5% se enquadram em outras categorias, como musicistas e produtoras fonográficas.
Ao nos voltarmos para as cidades de interior, essa situação se agrava. E isso pode ser percebido a partir da experiência de duas cantoras de referência na região de Viçosa (MG), Jady Garcia (25 anos) e Bia Dias (23 anos). Ambas são nativas da cidade e apresentam seu trabalho em bares, casas de show e festas particulares, e apesar de já terem seu público consolidado, não foi fácil crescer na música.
Início de carreira e família
A arte é uma constância na vida de Bia Dias, que desde nova começou sua história na dança graças a um projeto social da Prefeitura de Viçosa. Também foi na mesma época que ela começou a cantar na igreja, assim como tantos outros cantores iniciam sua carreira. Sua veia profissional começou muito cedo, pois aos 15 anos realizou sua primeira apresentação em barzinho.
Nesta época, a jovem cantora já começava a perceber a realidade da carreira que escolheu para sua vida: “E não era nada fácil né… Porque com 15 anos, quem é que vai te aceitar pra cantar num barzinho? Sendo mulher com só 15 anos… Foi muito trampo até a galera entender que era profissional”, relatou Bia.
Para Jady Garcia, um dos maiores entraves no início da carreira também foi o entendimento de que seu trabalho era realmente uma questão profissional, especialmente para sua família. “Minha mãe foi entender que música é um trabalho agora, pós-pandemia. Antes ela falava ‘Vai estudar! Você pode cantar, mas tem que trabalhar’. E eu falava: ‘Ué! Eu estou trabalhando’”, disse a cantora. Jady, na época, estudava Zootecnia no IFET de Rio Pomba (MG), cidade onde iniciou sua carreira.
Para ambas, a profissionalização apenas ficou evidente quando o dinheiro dos cachês começou a entrar, momento em que elas começaram a pagar suas próprias contas. Só então as famílias perceberam que se tratava de um trabalho sério e que necessitava de comprometimento.
“Na família, a galera sempre achava que música era coisa de vagabundo. ‘Ai não tô fazendo nada, vou tocar um violão’. Demorou até entenderem que eu tava ganhando grana e que eu ia, sei lá, pagar meu aluguel com música. Pra botarem fé também levou um tempo”
disse Bia Dias.
O meio sertanejo
O mercado musical em Viçosa, e na Zona da Mata como um todo, é predominantemente dominado pelo sertanejo, que hoje está com grande representação feminina no Brasil todo, mas é, historicamente, um estilo musical com maior participação masculina. No interior, este cenário é ainda mais escancarado e fácil de ser percebido, uma vez que ao buscar as atrações musicais nas casas de show e bares de Viçosa, vemos uma gritante maioria de cantores homens. Jady Garcia disse que sempre sentiu resistência das pessoas de contratarem artistas femininas, ou que não sejam dupla. Segundo ela, é muito difícil ver um solo, e quando acontece, ser uma mulher ainda é mais raro.
Jady é cantora sertaneja desde o início da carreira, por isso já viveu e ainda vive a diferença na contratação entre homens e mulheres, mas que também percebe uma mudança de visão graças ao crescimento do “feminejo”. Porém, uma dificuldade que ainda enfrenta no meio é lidar com o estereótipo de ter que usar botina, chapéu e calça apertada, itens que não costuma usar em suas apresentações. Por esse motivo, Jady afirmou já ter sido questionada se era cantora de rock ou DJ em diversas apresentações.
Para Bia Dias, o sertanejo é um meio ainda mais excludente. Ela, apesar de gostar do estilo musical, sente dificuldade em se inserir por ser uma mulher preta. “Quando eu comecei no sertanejo, eu cantava em grupo e também tive uma dupla, mas depois eu parei. Por quê? Porque a galera não vê uma preta cantando sertanejo. É padronizadão mesmo”, relatou a cantora, que após essa experiência, passou a focar suas apresentações no MPB e no Rap.
A dureza de ser mulher-artista
Uma outra questão muito presente na realidade de muitas mulheres, e que é enfrentada pelas duas cantoras, é o assédio. Essa agressão pode acontecer de diversas formas: moral, verbal e até sexual. No meio profissional, os artistas se colocam em uma posição de destaque e, algumas vezes de fácil acesso à diversas pessoas, e isso pode colocá-los em uma posição de muita vulnerabilidade.
“A gente tem muito fácil acesso. A gente fica muitas vezes em um palco baixinho.. E aí, sim, acontece, as vezes passa a mão na perna, na canela. Teve uma situação em um show aqui em Viçosa que o fotógrafo que estava lá com a gente no dia, fotografou o momento exato que uma moça pega dentro da minha calça e me puxa”
relata Jady Garcia
O assédio também pode vir dos contratantes dos shows e não só do público. Bia Dias expôs que já viveu diversas situações deste tipo com os donos dos estabelecimentos, em que as pessoas se apresentam muito simpáticas e tratam-na bem no momento de firmar o contrato, mas que ao final da apresentação estão com segundas intenções. “Do mesmo jeito que a cena (musical) em Viçosa e na região é dominada pelos caras, os contratantes também são. É muito dono de bar, muito dono de restaurante. Aí toma uma, toma outra, acha que é festa e vai fazer graça”, finaliza a cantora, que faz questão de enfatizar o papel masculino nesses espaços.
A experiência vivida por Bia Dias e Jady Garcia é apenas um recorte da realidade da artista mulher brasileira. Casos de assédio e desvalorização são rotina para quem enfrenta os palcos, especialmente nas cidades pequenas, como Viçosa.
Apesar dos desafios, ambas as talentosas cantoras seguem lutando para conquistar seus sonhos de se manterem no universo da música. E é com essa resistência que Bia Dias e Jady Garcia conquistaram seu público em Viçosa, se mostrando como artistas completas, consolidadas e referência na região.